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Abel Ferreira com o celular do produtor Pedro Spinelli
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Amante de futebol que sou, acompanhei, com muita angústia devo dizer, o episódio
grosseiro do português Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, tomando o celular
de um profissional da imprensa que trabalhava na área que lhe tinha sido
reservada pela CBF. A grosseria do Abel Ferreira não é novidade. Mas, a forma
reiterada aponta para um caminho ignorado por muitos, a convicção do técnico
português de que é portador da racionalidade no comando de um grupo habilidoso,
todavia, pouco afeitos ao trabalho com o cérebro. Isso fica muito claro em
outro episódio. Em 14 de julho de 2022 o português disse em entrevista que “Já disse várias vezes que os brasileiros são, de longe, os melhores que
já vi jogar. Mas precisam evoluir muito a nível de educação e como
homens, porque eles não têm essa formação. Eles às vezes não têm noção
nenhuma do que estão fazendo. E isso está na formação" . Foi esse pensamento que inspirou sua maior
lição aos jogadores do Palmeiras, um livro inteiro para ensina-los a ter coração
quente e “cabeça fria”, ou seja, para aprenderem a somar à habilidade física que têm, a racionalidade que precisam cultivar.
Isso é história do, e no, cotidiano. Os maiores progressos da teoria da
história, especialmente a partir dos annales, foi a percepção de que tudo é
história, inclusive a dimensão cultural de um povo. Nesse sentido, quem nasceu
no Brasil, e já concluiu o ensino médio, só ignora os usos políticos da copa de
1970 pelas falhas da nossa educação, especialmente no ensino de história. A
copa do mundo de 1970 foi o evento esportivo de maior cobertura midiática até
então e, desde o jingle às relações da seleção brasileira com o governo militar,
tudo era estrategicamente montado em favor do imaginário de um país que estava
dando certo, embora vivêssemos uma ditadura sanguinária.
Esse exemplo ilustrativo das relações entre futebol e história pensados
no Brasil dos anos 70 se estende ao que chamamos de história das mentalidades
para entendermos o fenômeno da Decolonialidade, ou de como um homem europeu, o
Abel Ferreira, se percebe racional na relação com outro homem, o brasileiro,
que é irracional. Nesse imaginário, a ciência, Deus e a civilidade são bens
propriamente de homens brancos na mesma medida em seus contrários são próprios
e próprias de não-europeus, ou negros para ser mais exato. E que se diga
claramente, ser negro, nessa perspectiva, não tem relação direta com a cor da
pele, mas simplesmente com a condição de não-europeu. Obviamente, pelo mito da
origem, norte americanos, australianos e canadenses gozam da condição de
europeus.
Entre outros, a intelectual equatoriana Catherine
Walsh, o sociólogo peruano Aníbal Quijano e o grande filósofo e psiquiatra da
Martinica Frantz Fanon explicam a Decolonialidade como um movimento em que
somos convidados a olhar para trás, para o processo colonial, para entender como
esse processo edificou-se um sistema de representação do mundo. Essa representação
funciona como mecanismo de divisão de uma ordem global. De um lado, o europeu,
branco, civilizado e cristão; do outro, o não-europeu, inculto, bárbaro e
pagão. Essa segunda forma de existência só pode qualificar-se na relação,
redentora, com o que já é bom, civilizado e racional. Essa mesma ordem vai se
reproduzindo microscopicamente, ou seja, em cada lugar, a exemplo do Brasil, ou
Uruaçu em Goiás, quem esteja mais próximo do ideal europeu, em termos de pele e
de valores, tanto mais terá respaldo social, aceitação e acesso aos bens
produzidos pela sociedade; proporcionalmente, a distância entre esse modelo ideal
implica dificuldade de acesso aos bens, inclusive trabalho e renda, na mesma
medida.
Para o Abel Ferreira, todos nós somos
brasileiros e, por consequência, não-europeus. Inferiores, também por
consequência da origem brasileira, não consegue entender o treinador português,
como árbitros podem contrariá-lo tanto. Então, quase sempre é expulso de campo.
Expulso, usa a mesma justificativa que usa quando seu time não consegue a
vitória, é culpa da cultura e do futebol brasileiro. Abel Ferreira acredita
ainda ser nosso colonizador. Abel Ferreira nos vê como nos viam os portugueses
523 anos atrás. E é justo que se diga, em história ou em cultura histórica, 523
anos é logo ali, é como ontem. Do ponto de vista do colonizador, sabendo como
os brasileiros são tratados em Portugal, não me surpreende essa soberba. Somos
nós, brasileiros, que precisamos entender a longa duração da Colonialidade, a
sua permanência entre nós. E infelizmente, pela própria lógica desse sistema-mundo,
muitos não entendem.
Quanto ao colonizador, ainda
não é possível a Abel Ferreira, sobretudo em face da cortina de proteção em sua
volta, entender as bandeiras corintianas no contexto das diretas:
“Ganhar ou perder, mas
sempre com democracia”.
Da minha parte, fico triste em ver que a imprensa brasileira prefira ser
condescendente a proteger os profissionais perseguidos por fazerem o seu
trabalho [o Paulo Roberto Martins que o diga!].