Tenho alguns trabalhos já publicados sobre o conceito de Trabalho Escravo, entre os principais minha tese de doutoramento (SILVA, 2016) e um artigo publicado na Revista Estudos Históricos (SILVA, 2019). Uma das hipóteses da discussão que faço é que a variedade de termos não implica pluralidade semântica, como se todos os termos fossem sinônimos. Longe disso, são históricos e, portanto, representativos de determinado momento de manifestação desse fenômeno ignóbil. Segunda questão relevante é que a problematização do conceito não é mero capricho ou formalidade teórica, o conceito é fundamental na percepção do fenômeno e, em consequência, para as políticas de enfrentamento.
Desse quadro decorreu a construção dos termos servidão, peonagem e escravidão por dívida como referência ao mesmo fenômeno, a escravidão denunciada por Casaldáliga e, depois, atestada por tantas outras denúncias, notícias de imprensa e até produção intelectual, como os estudos de Neide Esterci (1987; 1996).
Quando, acuados pelas denúncias de trabalho escravo e por cobranças da Comissão Pastoral da Terra, os juristas e políticos precisaram aprovar a Lei 10.803/2003, que alterou o Artigo 149 do Código Penal, consagrou-se um conceito muito significativo, o de trabalho análogo a escravo. Esse recurso linguístico é muito significativo. Significativo porque correspondendo a semelhante ou similar, subtende que não há o crime propriamente, mas apenas algo parecido com o crime. Não há nada igual no Código Penal, vez que, a exemplo, não se admite um tipo penal parecido com homicídio porque ou o crime é homicídio ou não é. Significativo porque a real beneficiária dessa prática é a elite branca que, historicamente, sempre foi escravista e nunca viu problema nenhum nisso.
Entendo, pois, que o conceito jurídico é classista. Está posto mais para proteger a elite branca brasileira que as vítimas. Basta que se entenda que no conceito clássico de trabalho escravo estão implicados sequestro, cárcere privado, tortura e, muito comumente, homicídio. A pesar disso, ninguém nunca foi condenado à prisão por trabalho escravo.
Entendo, por outro lado, que o conceito clássico perdeu sentido nos dias de hoje. Isso porque hoje o trabalho escravo está muito mais relacionado às condições degradantes de trabalho e à jornada exaustiva, situações tipificadas no Código Penal depois da reforma de 2003.
O conceito de trabalho escravo contemporâneo, ou escravidão contemporânea é mais útil porque agrega a variedade linguística e vai além, abarcando as formas multifacetadas com que o fenômeno da escravidão vai se manifestando no passar dos tempos.
BIBLIOGRAFIA
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização
Social. São Feliz do Araguaia: Prelazia de São Felix, 1971.
ESTERCI, Neide. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Petrópolis: Vozes, 1987.
______. Imobilização por dívida
e formas de dominação no Brasil de hoje.
Lusotopie, n. 3, p. 123-137, 1996.
SILVA, Moisés Pereira. O trabalho escravo contemporâneo e a atuação da CPT no campo (1970-1995). São Paulo: PUC-SP, 2016. Tese.
_____. O trabalho escravo contemporâneo: conceito e enfrentamento à luz do trabalho jurídico e pastoral do frei Henri Burin des Roziers. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol 32, nº 66, p. 329-346, janeiro-abril 2019.