Resumo:
O trabalho de Roger Chartier é apresentado como resposta à insatisfação ante a história das mentalidades e à história serial com noções quantitativas produzidas na França entre 1982 e 1986. Vê que a delimitação espaço-temporal da abordagem de Chartier, constituída de oito capítulos, é bem definida. Num primeiro momento o historiador tece considerações a cerca da história cultural e da história das mentalidades para posteriormente, discorrer sobre questões amplas como as relações entre filosofia e história, formação social e habitus, os elementos que envolvem a produção e editoração dos textos históricos e alguns estudos de casos como as leituras camponesas na França do século XVIII, análise da literatura de cordel relacionada à expressão popular e sobre a questão da cultura política e cultura popular no antigo regime. Não podemos objetar que “a história cultural: entre práticas e representações” é complementar à seqüência que tenho apresentado nesse blog no tocante análises textuais historiográficas, ou seja, da história, de modo especial em sua vertente, cultural como perspectiva de leitura das construções sociais, que são representações, enquanto mecanismo de leitura da compreensão que o grupo faz de si e dos outros e, enfim, da forma como constroem sua própria história.
Palavras chave: história, filosofia, representação e cultura.
Se a proposição de Chartier procura ser alternativa à insatisfação ante a história serial e a história das mentalidades, seu plano de abordagem se funda no entendimento da história cultural como perspectiva de identificação do “modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler”. Essa pretensão já é bastante desveladora porque deixa desnudar o fato contundente de que a cultura é uma construção e essa construção envolve intenção racional –não resulta de atos instintivos, mas atos e valores significados para o grupo –e como produção, numa sociedade de tendências globaizantes, sendo a leitura uma veículo dessa globalização, é dada a ler. Desse “dada a ler” já se pode antecipar que envolve toda uma atmosfera de significados que entremeia, por exemplo, a escrita da história, ou a produção literária mais genérica. Constatada a forma como a história é produzida, torna-se necessário para o seu entendimento, o relacionado dos discursos com a posição de quem os utiliza, o que significa dizer que esses discursos não são neutros e que o reconhecimento de suas intencionalidades só poderá ser feita a partir daqueles que os produzem.
Feita essa leitura integrada a “a memória coletiva” de Halbwachs; “identidade e diferença” organizado por Tomaz Tadeu; “O Oriente como invenção do Ocidente” de Eduard Said e “História do medo no Ocidente” de Jean-Delamu fica perceptível que a cultura como dado histórico é interessante, sobretudo, como reconhecimento de um conflito que dá a perceber pela própria representação que cada grupo faz de si e do outro, ou de uma outra forma como a negação do outro se manifesta no interior da cada grupo. Chartier, a esse respeito, diz que as lutas de representação são tão importantes quantos as lutas econômicas. Como reforço argumentativo pode-se dizer que, caso específico da Segunda Guerra Mundial, é difícil objetar que preponderante às questões econômicas as representações nazistas se fizeram mais agressivas. A representação, tão importante, é apresentada como uma forma de dar conta da coisa ausente ou como exibição de uma presença; no primeiro caso é objeto de conhecimento que se faz do objeto ausente através de sua substituição por uma imagem produzida; no segundo caso, consta a relação simbólica pela qual uma imagem evoca uma realidade como, por exemplo, a imagem da águia simbolizando liberdade e da cobra, traição.
Chartier inicia a discussão em torno da história intelectual pelo que identifica como “múltiplos problemas”. Para ele a história intelectual contém em si uma especificidade nacional de difícil transposição para outros contextos. Relativo a essa especificidade nacionalista, o autor identifica na América a história intelectual ligada à nova história e a história das idéias, também na América, cunhada por Perry Miller. O que importa nesses comentários é a intenção de Chartier em evidenciar que a história intelectual ou das idéias está relacionada à maneira nacional pensar questões históricas. Disso resulta a crítica maior apresentada pelo autor para quem:
A história intelectual opõe, portanto, uma dupla incerteza respeitante ao vocabulário que a designa: cada historiografia nacional possui a sua própria conceptualidade e, em cada uma delas, entram em competição diferentes noções, mal diferenciadas umas das outras. (p. 30).
Essa diversidade terminológica é exemplificada a partir de Jean Ehard, para quem a história das idéias compreende a história dos grandes sistemas do mundo, a história da realidade coletiva e difusa que é a opinião e a história estrutural das formas de pensamento, e Robert Danton que apresenta a história intelectual correspondendo a história das idéias, a história intelectual, a história social das idéias e a história cultural. Chartier, contudo, enfatiza que, “essas definições designam, no fundo, a mesma coisa”. (p. 31). Fica transparente em sua elaboração que, mas que entender as designações, importa entender as intenções e como os historiadores, numa questão tão difusa, delimitam o território da abordagem, importa situar-se no meio dos conflitos intelectuais e ao mesmo tempo institucionais em que se determinam os objetos, metodologia e utensilagem. A incerteza e dispersão do vocabulário apresentado anteriormente remetem, para o autor, às lutas intradisciplinares e interdisciplinares onde o que está em jogo é uma posição de hegemonia que para o autor e, “antes de mais, a hegemonia de um léxico”. Pode até parecer despropositado a discussão lexical da história intelectual, todavia, se em sintonia com “identidade e diferença” se perceberá que a produção social da identidade e da diferença envolve o uso da linguagem como instrumento de primazia do dominante sobre o dominado. Embora tenhamos focado aqui o caso americano, a discussão de Chartier delimita como campo analítico a história intelectual na França com privilégio à produção dos annales com destaque para Lucien Febvre e Marc Bloch e o que eles pensam a cerca da história intelectual.
Nesse sentido, as proposições de Febvre constituem crítica ácida à história intelectual de sua época. A crítica é sobretudo pela institucionalização das idéias onde se privilegiam “inteligências desencarnadas” com conceitos que têm vida própria, ou seja, que se incerram em si mesmo, “fora do tempo e do espaço”. A história intelectual, tal qual pensa Febvre tem que estabelecer relação entre o sistema histórico e o contexto social que o viu nascer. Dito de outra forma, conta como desvelamento histórico todo o conjunto de manifestações de um contexto. A utensilagem mental é a forma alternativa de entender a história onde, sendo a utensilagem os mecanismos culturais e intelectuais: o pensamento, linguagem, linguagem científica, o sistema de percepção etc., que é próprio de cada época, compreende-se cada grupo em seu tempo pelos utensílios e pela produção histórica específica do seu tempo. Assim:
A uma história intelectual das inteligências sem rédeas e das idéias sem suporte opõe-se uma historia das representações coletivas, das utensilagens e das categorias intelectuais disponíveis e partilhadas em determinada época (...) o indivíduo é devolvido à sua época. (p. 40).
Se em Bloch considera que o homem é filho do seu tempo não há como negar a similaridade com o que tem sido apresentado no pensamento de Lucien Febvre. Penso até que o caminho interpretativo daquilo que expõem é que as institucionalizações, e a história resulta disso, devem dar espaço à reflexão a cerca dos movimentos de contradição em seu interior porque não é possível que, por exemplo, dentro do romantismo não tenha havido expressões diversificadas e até contraditórias.
Quanto a história das mentalidades, é preciso dizer que as mentalidades resultam de construções coletivas e que, nesse tocante, importa mais que a idéia, para uma melhor leitura histórica, a encarnação da idéia. Esse modo de pensar evoca a compreensão do conceito de representação, tão recorrente nas obras indicadas para no processo seletivo de mestrado e doutorado da UFG 2009. A representação compreende, fundamentalmente, as construções coletivas dos grupos sociais, ou seja, a forma como o mundo é percebido e reproduzido pelo grupo. Isso implica que mesmo numa leitura, há a representação de quem lê, embora a produção do texto já tenha sido uma representação do escritor. Nas palavras de Chartier: “todo texto é produto de uma leitura, uma construção do seu leitor...” (p. 60).
A obra de Chartier adentra na discussão em torno da relação entre filosofia e história, onde identifica uma falta de conhecimento recíproca entre história e filosofia, o que não poderia ser diferente uma vez que se a história se ocupasse da filosofia de sua própria produção histórica, para muitos ela poderia ser tomada como filosofia da história e, por outro lado, enquanto narrativa do percurso filosófico, seria filosofia da história. Importa, contudo, que no tocante a história cultural há uma importância contundente onde, nas análises de Febvre, a história da filosofia, ilustrou o quanto a história intelectual era desencarnada. Chartier vislumbra a possibilidade da historiografia abrir espaço à crítica filosófica na sua produção para ele “pensar a possível reinserção da história da filosofia na história da produção cultural não é anular o dado filosófico do discurso filosófico, mas tentar compreender sua racionalidade específica na historicidade da sua produção e das suas relações com outros discursos”. (p. 73). A filosofia enquanto pressuposto de reflexão da produção histórica é inegável em sua riqueza e necessidade, todavia, como expõe o autor na seqüência de seu texto são muitas as especificidades de cada área, inclusive, para ilustrar, quanto aos métodos.
A análise da produção de Norbert Elia estabelece um outro entrelaçamento, desta feita entre história e sociologia. Disso resulta que, no caso proposto por Elia sobre o antigo regime, transparece viável também esse diálogo entre sociologia e história uma vez que a organização do corte no antigo regime possibilita uma leitura da organização social desse grupo compreendido em seu tempo e a partir de um recurso sociológico. É interessante essa proposição porque nela fica claro, inclusive, a representação onde “o ser social do indivíduo –seja o rei –é totalmente identificado com a representação que dele é dada por ele próprio ou pelos outros” (p. 112). A lógica da corte, portanto, é de uma distinção pela dependência que procura adequar cada conduta –inclusive a do rei –à relação onde ela deve se inscrever e se adaptar, tendo aí o comportamento social concernente à finalidade que é própria da sua posição.
Todas essas representações perpassam pela reprodução e, num período de maior tecnologia, essa reprodução das representações dizem respeito a textos impressos e suas leituras. Os textos contêm uma intenção, mas a sua reprodução pode conter outras intenções –no caso Chartier apresenta por exemplo as intenções de marketing e economia –e quem os lê lhes atribui uma outra feição de acordo com sua representação própria. Embora o leitor seja pensado pelo autor e pelo produtor, o que a princípio limita a liberdade do leitor, “face a um texto, é historicamente produzido um sentido e diferentemente construída uma significação”. (p. 121).
Também as leituras camponesas é objeto de análise das práticas e representações pelo autor. Ele afirma que para os iluministas a leitura camponesa era uma leitura uma leitura perdida. Todavia, as leituras camponesas, literatura de cordel, têm origem na produção literária erudita editorada em papel mais barato e sob forma sintetizada visando a redução de gastos. O gênero não destoa do contexto sócio-histórico. A popularização decorre mais de estratégia dos editores que de uma pretensa vulgarização da leitura camponesa.
Seguindo a análise nos limites das classes populares francesas, o autor analisa a cultura política e cultura popular no âmbito do antigo regime. Nesse tocante, o popular é empregado como um não-político; como o autor constata: “a emergência do espaço próprio da política, requer a supressão do popular”. (p.194). Há uma produção que assim representa o popular e por isso cristaliza essa imagem de não-político às classes populares que é tomada como vil. O que vai mudar essa imagem é o próprio decurso da história com a politização popular evidente na revolução que os designará agora como grupo politizado em detrimento de um estado cuja ordem consistia na sua obediência a um sistema de representação diferente. Assim, quanto mais se constata o grupo popular como politizado, mas se descentra o monarca do centro do poder absoluto. É o que atesta a Revolução Francesa.
Chartier finaliza a obra com um comentário sobre o Estado Moderno constituído sobre dois aspectos: do monopólio fiscal e do monopólio militar. As condições culturais desse Estado é observada a partir do desenvolvimento econômico e do processo de alfabetização das classes populares. As práticas de leitura decorrente dessa inserção de um grupo maior na perspectiva da escrita e da leitura invocam a questão do tipo de leitura, daquilo que se lê uma vez que a produção literária contêm mecanismos de dominação. A exigência de formação para os cargos políticos fez surgir a aspiração ao conhecimento como forma de obtenção de status o que contribui para disseminar ainda mais as práticas de leitura que contêm em si, também, os discursos ideológicos do Estado, o que leva o autor a concluir que “O Estado Moderno dá-se a ver nos textos”.
Conclusão
A obra de Chartier colabora ricamente para a compreensão da história cultural como viabilidade do agir social não fragmentado em personagens destaques que são atores e classes subalternas como espectadoras. A história intelectual sob a crítica de Lucien Febvre e Marc Bloch apontaram para uma história que não pode mais ser desencarnada do seu contexto, o que implica em abertura aos movimentos plurais próprio do espaço e tempo em que se produz a história.
As relações entre filosofia e história, tal como apresentadas, não configuram a superposição por qualquer das áreas, mas uma contribuição necessária em que a reflexão filosófica pode ser instrumento crítico para o repensar historiográfico, para a abertura do campo de pesquisa da história tal qual se faz ilustrar nas proposições de Norbert Elia que introduz a análise sociológico como recurso de compreensão, por contribuição, da história.
A produção literária e as representações que lhe são intrínsecas também são objetos de considerações. Essa produção, que nem sempre resulta daquilo que o autor realmente pretendeu, mas do que os editores concluíram, enquadrando o autor e o leitor, é posta nos meios populares –de modo especial relativo à literatura de cordel –como leitura vulgar pelos grupos dominantes, mas representa uma adaptação da literatura erudita. Essa condenação da literatura de cordel como forma vulgar de produção textual incide, por correspondência, com o modo como a participação política das classes populares é compreendida dentro do antigo regime. O que vai se alterando com a transformação da ordem política que se opera com a politização das classes populares evidenciadas em suas agitações e revoluções. E conclui toda a exposição com a exposição dos mecanismos de expressão do Estado Moderno relacionados à leitura, ou seja, produção cultural.
Palavras chave: história, filosofia, representação e cultura.
Se a proposição de Chartier procura ser alternativa à insatisfação ante a história serial e a história das mentalidades, seu plano de abordagem se funda no entendimento da história cultural como perspectiva de identificação do “modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler”. Essa pretensão já é bastante desveladora porque deixa desnudar o fato contundente de que a cultura é uma construção e essa construção envolve intenção racional –não resulta de atos instintivos, mas atos e valores significados para o grupo –e como produção, numa sociedade de tendências globaizantes, sendo a leitura uma veículo dessa globalização, é dada a ler. Desse “dada a ler” já se pode antecipar que envolve toda uma atmosfera de significados que entremeia, por exemplo, a escrita da história, ou a produção literária mais genérica. Constatada a forma como a história é produzida, torna-se necessário para o seu entendimento, o relacionado dos discursos com a posição de quem os utiliza, o que significa dizer que esses discursos não são neutros e que o reconhecimento de suas intencionalidades só poderá ser feita a partir daqueles que os produzem.
Feita essa leitura integrada a “a memória coletiva” de Halbwachs; “identidade e diferença” organizado por Tomaz Tadeu; “O Oriente como invenção do Ocidente” de Eduard Said e “História do medo no Ocidente” de Jean-Delamu fica perceptível que a cultura como dado histórico é interessante, sobretudo, como reconhecimento de um conflito que dá a perceber pela própria representação que cada grupo faz de si e do outro, ou de uma outra forma como a negação do outro se manifesta no interior da cada grupo. Chartier, a esse respeito, diz que as lutas de representação são tão importantes quantos as lutas econômicas. Como reforço argumentativo pode-se dizer que, caso específico da Segunda Guerra Mundial, é difícil objetar que preponderante às questões econômicas as representações nazistas se fizeram mais agressivas. A representação, tão importante, é apresentada como uma forma de dar conta da coisa ausente ou como exibição de uma presença; no primeiro caso é objeto de conhecimento que se faz do objeto ausente através de sua substituição por uma imagem produzida; no segundo caso, consta a relação simbólica pela qual uma imagem evoca uma realidade como, por exemplo, a imagem da águia simbolizando liberdade e da cobra, traição.
Chartier inicia a discussão em torno da história intelectual pelo que identifica como “múltiplos problemas”. Para ele a história intelectual contém em si uma especificidade nacional de difícil transposição para outros contextos. Relativo a essa especificidade nacionalista, o autor identifica na América a história intelectual ligada à nova história e a história das idéias, também na América, cunhada por Perry Miller. O que importa nesses comentários é a intenção de Chartier em evidenciar que a história intelectual ou das idéias está relacionada à maneira nacional pensar questões históricas. Disso resulta a crítica maior apresentada pelo autor para quem:
A história intelectual opõe, portanto, uma dupla incerteza respeitante ao vocabulário que a designa: cada historiografia nacional possui a sua própria conceptualidade e, em cada uma delas, entram em competição diferentes noções, mal diferenciadas umas das outras. (p. 30).
Essa diversidade terminológica é exemplificada a partir de Jean Ehard, para quem a história das idéias compreende a história dos grandes sistemas do mundo, a história da realidade coletiva e difusa que é a opinião e a história estrutural das formas de pensamento, e Robert Danton que apresenta a história intelectual correspondendo a história das idéias, a história intelectual, a história social das idéias e a história cultural. Chartier, contudo, enfatiza que, “essas definições designam, no fundo, a mesma coisa”. (p. 31). Fica transparente em sua elaboração que, mas que entender as designações, importa entender as intenções e como os historiadores, numa questão tão difusa, delimitam o território da abordagem, importa situar-se no meio dos conflitos intelectuais e ao mesmo tempo institucionais em que se determinam os objetos, metodologia e utensilagem. A incerteza e dispersão do vocabulário apresentado anteriormente remetem, para o autor, às lutas intradisciplinares e interdisciplinares onde o que está em jogo é uma posição de hegemonia que para o autor e, “antes de mais, a hegemonia de um léxico”. Pode até parecer despropositado a discussão lexical da história intelectual, todavia, se em sintonia com “identidade e diferença” se perceberá que a produção social da identidade e da diferença envolve o uso da linguagem como instrumento de primazia do dominante sobre o dominado. Embora tenhamos focado aqui o caso americano, a discussão de Chartier delimita como campo analítico a história intelectual na França com privilégio à produção dos annales com destaque para Lucien Febvre e Marc Bloch e o que eles pensam a cerca da história intelectual.
Nesse sentido, as proposições de Febvre constituem crítica ácida à história intelectual de sua época. A crítica é sobretudo pela institucionalização das idéias onde se privilegiam “inteligências desencarnadas” com conceitos que têm vida própria, ou seja, que se incerram em si mesmo, “fora do tempo e do espaço”. A história intelectual, tal qual pensa Febvre tem que estabelecer relação entre o sistema histórico e o contexto social que o viu nascer. Dito de outra forma, conta como desvelamento histórico todo o conjunto de manifestações de um contexto. A utensilagem mental é a forma alternativa de entender a história onde, sendo a utensilagem os mecanismos culturais e intelectuais: o pensamento, linguagem, linguagem científica, o sistema de percepção etc., que é próprio de cada época, compreende-se cada grupo em seu tempo pelos utensílios e pela produção histórica específica do seu tempo. Assim:
A uma história intelectual das inteligências sem rédeas e das idéias sem suporte opõe-se uma historia das representações coletivas, das utensilagens e das categorias intelectuais disponíveis e partilhadas em determinada época (...) o indivíduo é devolvido à sua época. (p. 40).
Se em Bloch considera que o homem é filho do seu tempo não há como negar a similaridade com o que tem sido apresentado no pensamento de Lucien Febvre. Penso até que o caminho interpretativo daquilo que expõem é que as institucionalizações, e a história resulta disso, devem dar espaço à reflexão a cerca dos movimentos de contradição em seu interior porque não é possível que, por exemplo, dentro do romantismo não tenha havido expressões diversificadas e até contraditórias.
Quanto a história das mentalidades, é preciso dizer que as mentalidades resultam de construções coletivas e que, nesse tocante, importa mais que a idéia, para uma melhor leitura histórica, a encarnação da idéia. Esse modo de pensar evoca a compreensão do conceito de representação, tão recorrente nas obras indicadas para no processo seletivo de mestrado e doutorado da UFG 2009. A representação compreende, fundamentalmente, as construções coletivas dos grupos sociais, ou seja, a forma como o mundo é percebido e reproduzido pelo grupo. Isso implica que mesmo numa leitura, há a representação de quem lê, embora a produção do texto já tenha sido uma representação do escritor. Nas palavras de Chartier: “todo texto é produto de uma leitura, uma construção do seu leitor...” (p. 60).
A obra de Chartier adentra na discussão em torno da relação entre filosofia e história, onde identifica uma falta de conhecimento recíproca entre história e filosofia, o que não poderia ser diferente uma vez que se a história se ocupasse da filosofia de sua própria produção histórica, para muitos ela poderia ser tomada como filosofia da história e, por outro lado, enquanto narrativa do percurso filosófico, seria filosofia da história. Importa, contudo, que no tocante a história cultural há uma importância contundente onde, nas análises de Febvre, a história da filosofia, ilustrou o quanto a história intelectual era desencarnada. Chartier vislumbra a possibilidade da historiografia abrir espaço à crítica filosófica na sua produção para ele “pensar a possível reinserção da história da filosofia na história da produção cultural não é anular o dado filosófico do discurso filosófico, mas tentar compreender sua racionalidade específica na historicidade da sua produção e das suas relações com outros discursos”. (p. 73). A filosofia enquanto pressuposto de reflexão da produção histórica é inegável em sua riqueza e necessidade, todavia, como expõe o autor na seqüência de seu texto são muitas as especificidades de cada área, inclusive, para ilustrar, quanto aos métodos.
A análise da produção de Norbert Elia estabelece um outro entrelaçamento, desta feita entre história e sociologia. Disso resulta que, no caso proposto por Elia sobre o antigo regime, transparece viável também esse diálogo entre sociologia e história uma vez que a organização do corte no antigo regime possibilita uma leitura da organização social desse grupo compreendido em seu tempo e a partir de um recurso sociológico. É interessante essa proposição porque nela fica claro, inclusive, a representação onde “o ser social do indivíduo –seja o rei –é totalmente identificado com a representação que dele é dada por ele próprio ou pelos outros” (p. 112). A lógica da corte, portanto, é de uma distinção pela dependência que procura adequar cada conduta –inclusive a do rei –à relação onde ela deve se inscrever e se adaptar, tendo aí o comportamento social concernente à finalidade que é própria da sua posição.
Todas essas representações perpassam pela reprodução e, num período de maior tecnologia, essa reprodução das representações dizem respeito a textos impressos e suas leituras. Os textos contêm uma intenção, mas a sua reprodução pode conter outras intenções –no caso Chartier apresenta por exemplo as intenções de marketing e economia –e quem os lê lhes atribui uma outra feição de acordo com sua representação própria. Embora o leitor seja pensado pelo autor e pelo produtor, o que a princípio limita a liberdade do leitor, “face a um texto, é historicamente produzido um sentido e diferentemente construída uma significação”. (p. 121).
Também as leituras camponesas é objeto de análise das práticas e representações pelo autor. Ele afirma que para os iluministas a leitura camponesa era uma leitura uma leitura perdida. Todavia, as leituras camponesas, literatura de cordel, têm origem na produção literária erudita editorada em papel mais barato e sob forma sintetizada visando a redução de gastos. O gênero não destoa do contexto sócio-histórico. A popularização decorre mais de estratégia dos editores que de uma pretensa vulgarização da leitura camponesa.
Seguindo a análise nos limites das classes populares francesas, o autor analisa a cultura política e cultura popular no âmbito do antigo regime. Nesse tocante, o popular é empregado como um não-político; como o autor constata: “a emergência do espaço próprio da política, requer a supressão do popular”. (p.194). Há uma produção que assim representa o popular e por isso cristaliza essa imagem de não-político às classes populares que é tomada como vil. O que vai mudar essa imagem é o próprio decurso da história com a politização popular evidente na revolução que os designará agora como grupo politizado em detrimento de um estado cuja ordem consistia na sua obediência a um sistema de representação diferente. Assim, quanto mais se constata o grupo popular como politizado, mas se descentra o monarca do centro do poder absoluto. É o que atesta a Revolução Francesa.
Chartier finaliza a obra com um comentário sobre o Estado Moderno constituído sobre dois aspectos: do monopólio fiscal e do monopólio militar. As condições culturais desse Estado é observada a partir do desenvolvimento econômico e do processo de alfabetização das classes populares. As práticas de leitura decorrente dessa inserção de um grupo maior na perspectiva da escrita e da leitura invocam a questão do tipo de leitura, daquilo que se lê uma vez que a produção literária contêm mecanismos de dominação. A exigência de formação para os cargos políticos fez surgir a aspiração ao conhecimento como forma de obtenção de status o que contribui para disseminar ainda mais as práticas de leitura que contêm em si, também, os discursos ideológicos do Estado, o que leva o autor a concluir que “O Estado Moderno dá-se a ver nos textos”.
Conclusão
A obra de Chartier colabora ricamente para a compreensão da história cultural como viabilidade do agir social não fragmentado em personagens destaques que são atores e classes subalternas como espectadoras. A história intelectual sob a crítica de Lucien Febvre e Marc Bloch apontaram para uma história que não pode mais ser desencarnada do seu contexto, o que implica em abertura aos movimentos plurais próprio do espaço e tempo em que se produz a história.
As relações entre filosofia e história, tal como apresentadas, não configuram a superposição por qualquer das áreas, mas uma contribuição necessária em que a reflexão filosófica pode ser instrumento crítico para o repensar historiográfico, para a abertura do campo de pesquisa da história tal qual se faz ilustrar nas proposições de Norbert Elia que introduz a análise sociológico como recurso de compreensão, por contribuição, da história.
A produção literária e as representações que lhe são intrínsecas também são objetos de considerações. Essa produção, que nem sempre resulta daquilo que o autor realmente pretendeu, mas do que os editores concluíram, enquadrando o autor e o leitor, é posta nos meios populares –de modo especial relativo à literatura de cordel –como leitura vulgar pelos grupos dominantes, mas representa uma adaptação da literatura erudita. Essa condenação da literatura de cordel como forma vulgar de produção textual incide, por correspondência, com o modo como a participação política das classes populares é compreendida dentro do antigo regime. O que vai se alterando com a transformação da ordem política que se opera com a politização das classes populares evidenciadas em suas agitações e revoluções. E conclui toda a exposição com a exposição dos mecanismos de expressão do Estado Moderno relacionados à leitura, ou seja, produção cultural.