Vista aérea de Piraquê. google eart. |
Esse texto é um reencontro com o meu passado. Acho que por isso escrevo com uma certa revolta, porque falar desse assunto é me por no divã, de forma pública, para rever um tempo de dor e sofrimento que a memória, em vão, insiste em apagar. Não apaga, mas, como acontece na maioria dos casos, filtra e só deixa vir à tona a lembrança do que foi bom. A lembrança das mangueiras, dos pássaros, dos banhos na fonte na casa da Mamãe do Goiás (como chamávamos minha avó materna).
A beleza constrastando com o sofrimento. |
Mas, ouvindo aquele anúncio, naquela manhã chuvosa, a lembrança do que foi ruim irrompeu porque agora adulto, e tendo estudado sobre o contexto histórico da minha própria região, tenho uma leitura própria para a escravidão em que vivíamos e sei que, no passado, o sistema funcionava com esses mesmos mecanismos do presente, ou seja, ao mesmo tempo em que o Zeca Batista era o grande explorador, era ele também que distribuía leite na vila toda, foi através dele que chegou a energia elétrica, era ele a autoridade para quase todos os conflitos. Ele, Zeca Batista, era a medida de todas as coisas.
Eu não tive infância. desde que pude com o peso de uma foice e consegui movimentá-la, roçei os pastos do Zeca Batista. Trabalhavam comigo, além do meu padrasto, meu irmão, mais velho que eu um ano (acho começamos trabalhar por volta de uns 7 e 8 anos respectivamente), meu tio Roberto e o Emivaldo, que pela convivência e proximidade de idade, embora fosse tio Emivaldo, chamávamos só de Emi. Muito raramente meu padrasto contratava um peão que vivia quase que como um membro da família. Sei que meus tios também não tiveram infância. Trabalhávamos em lugares pantanosos plantando capim ou roçando o pasto e não havia hora certa para iniciar ou para terminar a faína diária. Não havia compensação nesse trabalho para nós, que éramos crianças, tão pouco para nossos país, ou para o peão, que por ventura estivesse em nossa companhia, os adultos.
Em alguns fins de semana, acho que a intervalos quinzenais, meu padrasto ia à cantina aonde comprava farinha, sal, açucar, café, arroz e feijão e, uma vez ou outra, carne seca. Além do alimento, ele precisava comprar foice, facão, esmeril e lima. A foice e o facão era para o serviço, cada criança-trabalhador precisava de uma foice; o esmeril e a lima era para amolar a foice e o facão. Tudo era tão caro, comparado ao valor da mão-de-obra que empregávamos, que os adultos acabavam sempre devendo muito ao patrão. Ao meu entendimento infantil, dívida do meu padrasto com o Zeca Batista parecia maior que a dívida que o rádio dizia que o Brasil tinha com o exterior. Meu padrasto, em troca de uma comida minguada e dos instrumentos de trabalho, estava sempre devendo. Nunca trabalhamos por dinheiro. Nunca houve lucro nesse trabalho. Acho que nasci escravo daquele sistema.
Mas nós, crianças e adultos, achávamos que isso era normal. Era a década de 1980 e essa era a realidade da região. Como considerar senhor de escravo um homem tão bom, que distribuia leite de graça às crianças? Como considerar mau o homem que mantinha "o motor de energia" funcionando, mesmo que fosse só de 18hs às 22hs? E as histórias de crime popularizadas? De peões que jamais receberam o seu "acerto"? Dos desaparecidos? E o caso da execução do seu Martins?
Entnedi essa contradição mais tarde, quando iniciei minha graduação em História. O livro de Victor Nunes Leal, "Coronelismo, enxada e voto" explica, inteligível para o mais leigo no assunto, o que é o coronelismo. O jornalista Ricardo Kotscho também escreveu um livro, "O massacre dos posseiros: conflitos de terra no Araguaia-Tocantins" em que cita o senhor José Batista Nepomuceno, o Zeca Batista, como um dos grileiros de terra na região, onde hoje é o Piraquê, e explica como ele ficou rico, beneficiado pelo governo militar em troca da delação, falsa ou verdadeira, de pessoas envolvidas com os guerrilheiros do Araguaia. Se ele entregou ou não pessoas para os militares não sei. Mas não tenho dúvida de que ele era, naquele período, o "representante local" do governo, que era militar. E sei que foi na década de 1970 que ele se tornou o poderoso chefão na região.
A política coronelista era essa, de dar o leite pela manhã e o chicote o dia inteiro. Dizem os fatalistas que a jusitça de Deus tarda mas não falha. A justiça do homem falhou, porque o Zeca Batista nunca foi às barras de um tribunal, embora fosse temido por suas "malvadezas". Mas hoje, justiça de Deus ou não, ele já não tem força econômica, ou política, para ofender ninguém. A roda da história gira e a dinâmica do poder vai se reinventando. O pobre no entanto, seja no início do século XX, no que chamaram de coronelismo, seja no presente, continua a mercê dos desmandos políticos que faz parecer dádiva as migalhas que lhes retornam depois que quase tudo foi retirado ao próprio povo.
Houve um tempo em que botinas comprava voto. E houve um tempo em que leite era suficiente. E agora? Brinquedo? |
É incrível como o pensamento é mais rápido que a palavra e a escrita. Tudo isso pensei num lance de poucos segundos, enquanto esperava minha prima, que devia seguir comigo para Goiânia. Agora estou transcrevendo essa reminiscência e sei que ainda estou silenciando muito do que poderia ser dito. Externar, o que estou escrevendo, no entanto, é quase como um grito de protesto contra essa volta ao passado, porque sei, pela minha pele exposta ao sol, pelo meu corpo doloridos nos pastos, que o passado não foi nada bom.
Bibliografia:
Bibliografia:
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
KOTSCHO, Ricardo. O massacre dos posseiros: conflitos de terra no Araguaia-Tocantins. 2a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
KOTSCHO, Ricardo. O massacre dos posseiros: conflitos de terra no Araguaia-Tocantins. 2a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.