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domingo, 30 de setembro de 2012

O GRITO DO IPIRANGA OU SOBRE O NASCIMENTO DO BRASIL



Desde longa data tenho sido um crítico do uso do livro didático em sala de aula. Sou tão radical nessa questão ao ponto de defender a sua extinção. Isso não significa que os alunos não devam ter um material de apoio, devem ter. Mas esse material de apoio não pode ser alienante como o livro didático tem sido. Esse artigo, entretanto, não se propõe discutir o livro didático especificamente, ele é uma escrita sobre os mecanismos de representação/construção de uma verdade sobre o Brasil e de como os aparelhos de Estado estiveram e continuam a serviço dessa doce ilusão sendo, neste caso, o livro didático um exemplo dessa estratégia.

A história do Brasil é, antes de tudo, uma síntese de conteúdos históricos selecionados por um grupo de pessoas que, entre tantos fatos envolvendo uma pluralidade de pessoas, decidiram que especificamente determinados conteúdos eram mais importantes e por isso deveriam constituir um compêndio de informações sobre o Brasil. É essa seleção que nos diz o que foi a história do Brasil.

Essa seleção, que é arbitrária, é também produto de um jogo de poder, se pensarmos nas lições de Foucault, ou numa perspectiva marxista, de uma luta de classe. Quem tem o poder de dizer o que é verdade, portanto válido, e o que não é verdade, portanto inválido, é exatamente quem goza do poder, ou, dito de outra forma, constitui a elite, aquela classe que detém o poder socioeconômico de determinar tudo.

D. Pedro I, e depois D. Pedro II foram pessoas ligadas, por dependência, a essas classes. No caso de D. Pedro I, foi exatamente o engajamento, em causa própria, de uma elite no Brasil que ante o perigo de uma recolonização, que significaria a perda da “liberdade” de comércio, forjaram o processo de desligamento com Portugal, também chamado de independência, no qual D. Pedro I foi a marionete prática. Não houveram mudanças substanciais. Os escravos continuaram escravos e os portugueses continuaram mandando e desmandando aqui. No dia 29 de agosto de 1825 o Brasil assinou um acordo de paz e amizade com Portugal, o reconhecimento português da independência, mas a que preço? 2 milhões de libras esterlinas, valor que a Inglaterra se prontificou a pagar em troco de vantagens alfandegárias. E tudo, aparentemente se resolvia assim.

Doce ilusão. Os livros didáticos são unânimes em apresentar supostas resistências ao processo de independência nas províncias de Pernambuco, Bahia, Piauí, Grão-Pará e Maranhão. Catelli Junior (2011, p.203), um dos livros didáticos adotados no IFG Uruaçu, diz que nestas províncias ocorreram lutas de resistência que se estenderam até fins de 1823. O que o autor não diz é que essa resistência não era à independência, mas ao contrário, era uma exigência de um processo que fosse radical, de expulsão dos portugueses, de fim dos privilégios dos lusos. O autor ainda faz pensar que foi só isso. Alguns grupos que se arvoraram e pronto. Doce ilusão para dormentes. Fato é que o maior movimento de contestação desse processo de independência foi a cabanagem, no Pará. O conflito durou mais de uma década e foi, pela primeira vez, o momento em que populares, com líderes populares, chegaram ao poder e desbancaram as elites luso-brasileiras. Era um movimento contra a exclusão social dos cabanos, o grupo marginalizado da sociedade paraense, mas era também pelo fim dos privilégios dos portugueses e por um corte radical com Portugal. Porque será que os livros didáticos ignoram esse movimento tão importante?

No governo de D. Pedro II, que chegou ao poder com 15 ano de idade graças ao golpe da maioridade, a esforço que se fazia necessário era o de construção de uma identidade do Brasil. D. Pedro era autoritário, como bem o provava o Poder Moderador, de modo que a identidade a ser construída era a identidade de um país que se identificasse com a monarquia e as origens dessa monarquia eram portuguesa-européia.

O historiador José Carlos Reis, autor de identidades do Brasil, livro com versão eletrônica em: http://www.4shared.com/office/D3qMqwHF/as_identidades_do_brasil__de_v.html, diz, muito acertadamente que D. Pedro II “precisava muito da história e dos historiadores” (p. 25). O espaço de construção dessa história necessária à Dom Pedro e às elites foi o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Reis (op. cit) diz, citando Guimarães (1988) que “o imperador precisava de historiadores para legitimar-se no poder”. Foi assim que em 1840 o IHGB estabeleceu uma premiação para quem elaborasse um projeto de como deveria ser escrita a história do Brasil. O alemão Karl Philipp Von Martius foi o vencedor desse concurso propondo, em seu trabalho, que a escrita fosse feita a partir da análise das raças, da mescla de raças se descobriria a essência do Brasil. Francisco Adolfo de Varnhagen, um alemão que nasceu no Brasil, apoiado e a serviço do Império, traduziu, num manual de história do Brasil o espírito da proposta de Von Martius. Varnhagen propôs a análise das raças para que, a partir disso, fosse encontrado o sentido da história do Brasil, que era seguir da barbárie à civilização. O estado nativo, era o primitivo, o ser alcançado, a civilidade luso-européia, da qual a monarquia era um modelo. Segundo Reis (op. cit, p. 36) Varnhagen propunha nos seus capítulos sobre a história indígena, a superação desse passado porque

o presente-futuro do Brasil se assentaria em um outro passado, naquele que veio do exterior para pôr fim a essa barbárie e selvageria interiores. Com a chegada do cristianismo, do rei, da lei, da razão, da paz, da cultura, da civilização, com a chegada dos europeus a este território, o Brasil surgiu e integrou-se no seio da providência. (REIS, 2001, p. 37).

Foi exatamente nesse sentido que caminhou a história do Brasil. Já, por algum tempo, ocupei-me do estudo da história da história do Brasil. E, sobretudo no que diz respeito à história ensinada, os manuais constituíam-se de narrativas com fins informativos-morais. Desse modo, além do caráter quase religioso com que se tratavam certas temáticas, as biografias de homens ilustres completava esse quadro de preparação moral do brasileiro que devia servir ao Brasil. A história era como um espelho que refletia grandes personagens, que pelo exemplo honroso, deviam ser seguidos.

Foi dentro desse cenário de representação que se construiu o Brasil historicamente, ou a história do Brasil. Não estou jogando no lixo tudo o que se produziu então. Esse não é o meu papel. O que estou propondo é a problematização dessa história, inclusive dos meios de leitura dessa história, como é o caso do livro didático.

Em 1888, a pedido do imperador, D Pedro II, que perderia o cargo no ano seguinte, ficou pronto o quadro “independência ou morte” de Pedro Américo. Esse é um dos exemplos mais eloquentes de construção da história com propósitos outros que não a história em si.

Como sabemos, a monarquia estava em crise. Havia um movimento no Brasil, que não queria só a queda de D. Pedro II, queria a queda da própria monarquia e a instauração da República. Então, ao mesmo tempo em que os republicanos reproduziam imagens de um imperador caduco e, consequentemente de uma monarquia ultrapassada, D. Pedro buscava a construção de outra imagem, a de uma origem heroica da monarquia cujo heroísmo do seu pai, Pedro I, poderia justificar a continuação do seu governo, em crise, e permanência da monarquia, por consequência.

E fez-se uma verdade sobre a independência
MEISSONIER, Ernest (1875). Batalha de Friedland, 1807. O louvor a Napoleão Bonaparte 
Construiu-se uma obra de arte com vistas a identificar D. Pedro I, por solicitação de seu filho, Pedro II, com Napoleão Bonaparte, o mito que fez da França um império. Então, seria D. Pedro I um herói e a própria origem mitológica da monarquia brasileira, estaria alicerçada nesse fato fundador, a bravura do primeiro monarca.

O quadro sobre o "Grito do Ipiranga", na verdade, é uma réplica do quadro de Ernest Meissonier, pintado em 1875 para homenagear Napoleão Bonaparte. 
AMÉRICO, Pedro (1888). Em tempos de abolição da escravatura, das idéias liberais-republicanas, a busca de origens heróicas para o que não se sustenta mais por si.

Contudo, José Murilo de Carvalho, em os esplendores da imortalidade diz:

De início, dom Pedro não podia montar a besta gateada de que falam as testemunhas. O pedestre animal, apesar de ter arcado com o peso imperial, teve o desgosto de se ver substituído no quadro pela nobreza de um cavalo. Com maior razão, prossegue o pintor, o augusto moço não podia ser representado com os traços fisionômicos de quem sofria as incômodas cólicas de uma diarréia. Como se sabe, a diarréia fora o motivo da parada da comitiva às margens do Ipiranga (um irreverente poderia acusar dom Pedro de ter iniciado a poluição do desditoso riacho).

Poderia o professor de história negar o conteúdo tradicional sobre a independência do Brasil? Minha resposta é não. Por outro lado, não há sentido no estudo da história que não seja o de desenvolvimento, no aluno, do espírito crítico que deve levá-lo à construção de conhecimento. É o aluno, por minha mediação, que deve construir uma verdade sobre a independência, e a história como um todo.

E é exatamente por isso que iniciei esse texto criticando o livro didático. Ele entorpece alunos e professores. Os livros didáticos constituem um mal exatamente por contribuírem mais com alienação de alunos e professores do que com a reflexão crítica, fator mais importante no processo ensino-aprendizagem. No caso dos alunos, o livro aliena porque às vezes constitui embaraço à pesquisa; no caso dos professores, porque sobretudo os professores incompetentes, estes são quase a maioria, tornam-se escravos do livro didático. 

Em atenção a um questionamento da Brenda Paula Leal Nunes, do IFG, quero fazer a seguinte ponderação. A referida aluna questionou que eu estava dando ênfase para a Cabanagem, como movimento popular do período regencial porque eu gostava do Pará, visto que ela sequer tinha ouvido falar desse movimento. Me pareceu coerente o argumento. E até gostei porque esse argumento é sintomático, ou seja, ele revela uma verdade.

Vejamos, falei em sala de aula de três movimentos: Revolta dos Malês, que sequer chegou às vias de fato, já que houve uma delação do movimento que resultou em repressão dos líderes, punidos com a morte ou com o degredo.  A farroupilha que, lutando contra as taxações consideradas favoráveis à região do Prata, tentou criar uma república no Sul. Embora tenha havido luta, o governo resolveu a questão pela diplomacia, já que, diferente dos malês, esse era um movimento das elites sulistas, portanto, não precisava haver punições. 

A cabanagem difere destes movimentos por duas razões; pelo propósito e por sua característica fundamental. Os cabanos constituíam a ralé da sociedade paraense, por conseguinte, seu movimento foi exatamente contra a opressão que pesava sobre a massa excluída. Então, foi a primeira e única vez na história do Brasil em que pessoas do povo chegaram ao poder e o mantiveram por um período de tempo considerado. Não era, diferente dos outros movimentos, uma luta das elites que usavam o povo em função de seus intereses sócio-econômicos e políticos; era uma luta do povo, liderado pelo povo. Assim, a característica popular e o propósito popular da Revolução Cabana é que a difere das demais.

Agora a Brenda, ou qualquer outra pessoa, poderia me perguntar porque essa história é pouca conhecida? Simplesmente, porque a história do Brasil é uma história construída, como tento demonstrar aqui, para atender determinados fins e esses fins nunca foram outros senão a auto-afirmação das elites que mandaram e mandam nesse país.

Bibliografia:

CARVALHO, José Murilo de. Os esplendores da imortalidade. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_6_2.htm, (acesso em setembro de 2012).
REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 4ª Ed. São Paulo: FGV, 2001.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.

Indicação de pesquisa:

OLIVIERI, Antonio Carlos. Independência ou morte! A representação idealizada de um fato histórico. Disponível em http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1689u25.jhtm (acesso em setembro de 2012).
O grito do Ipiranga aconteceu como no quadro? HowStuffWorks Brasil. Disponível em http://pessoas.hsw.uol.com. br/ipiranga.htm (acesso em setembro de 2012).