Desde longa data tenho sido um crítico
do uso do livro didático em sala de aula. Sou tão radical nessa questão ao
ponto de defender a sua extinção. Isso não significa que os alunos não devam
ter um material de apoio, devem ter. Mas esse material de apoio não pode ser
alienante como o livro didático tem sido. Esse artigo, entretanto, não se
propõe discutir o livro didático especificamente, ele é uma escrita sobre os
mecanismos de representação/construção de uma verdade sobre o Brasil e de como
os aparelhos de Estado estiveram e continuam a serviço dessa doce ilusão sendo,
neste caso, o livro didático um exemplo dessa estratégia.
A história do Brasil é, antes de tudo, uma
síntese de conteúdos históricos selecionados por um grupo de pessoas que, entre
tantos fatos envolvendo uma pluralidade de pessoas, decidiram que
especificamente determinados conteúdos eram mais importantes e por isso
deveriam constituir um compêndio de informações sobre o Brasil. É essa seleção
que nos diz o que foi a história do Brasil.
Essa seleção, que é arbitrária, é também
produto de um jogo de poder, se pensarmos nas lições de Foucault, ou numa
perspectiva marxista, de uma luta de classe. Quem tem o poder de dizer o que é
verdade, portanto válido, e o que não é verdade, portanto inválido, é
exatamente quem goza do poder, ou, dito de outra forma, constitui a elite,
aquela classe que detém o poder socioeconômico de determinar tudo.
D. Pedro I, e depois D. Pedro II foram
pessoas ligadas, por dependência, a essas classes. No caso de D. Pedro I, foi
exatamente o engajamento, em causa própria, de uma elite no Brasil que ante o
perigo de uma recolonização, que significaria a perda da “liberdade” de
comércio, forjaram o processo de desligamento com Portugal, também chamado de
independência, no qual D. Pedro I foi a marionete prática. Não houveram
mudanças substanciais. Os escravos continuaram escravos e os portugueses
continuaram mandando e desmandando aqui. No dia 29 de agosto de 1825 o Brasil
assinou um acordo de paz e amizade com Portugal, o reconhecimento português da
independência, mas a que preço? 2 milhões de libras esterlinas, valor que a
Inglaterra se prontificou a pagar em troco de vantagens alfandegárias. E tudo,
aparentemente se resolvia assim.
Doce ilusão. Os livros didáticos são
unânimes em apresentar supostas resistências ao processo de independência nas
províncias de Pernambuco, Bahia, Piauí, Grão-Pará e Maranhão. Catelli Junior
(2011, p.203), um dos livros didáticos adotados no IFG Uruaçu, diz que nestas
províncias ocorreram lutas de resistência que se estenderam até fins de 1823. O
que o autor não diz é que essa resistência não era à independência, mas ao
contrário, era uma exigência de um processo que fosse radical, de expulsão dos portugueses,
de fim dos privilégios dos lusos. O autor ainda faz pensar que foi só isso. Alguns
grupos que se arvoraram e pronto. Doce ilusão para dormentes. Fato é que o
maior movimento de contestação desse processo de independência foi a cabanagem,
no Pará. O conflito durou mais de uma década e foi, pela primeira vez, o
momento em que populares, com líderes populares, chegaram ao poder e desbancaram
as elites luso-brasileiras. Era um movimento contra a exclusão social dos
cabanos, o grupo marginalizado da sociedade paraense, mas era também pelo fim
dos privilégios dos portugueses e por um corte radical com Portugal. Porque
será que os livros didáticos ignoram esse movimento tão importante?
No governo de D. Pedro II, que chegou ao
poder com 15 ano de idade graças ao golpe da maioridade, a esforço que se fazia
necessário era o de construção de uma identidade do Brasil. D. Pedro era autoritário,
como bem o provava o Poder Moderador, de modo que a identidade a ser construída
era a identidade de um país que se identificasse com a monarquia e as origens
dessa monarquia eram portuguesa-européia.
O historiador José Carlos Reis, autor de
identidades do Brasil, livro com versão eletrônica em: http://www.4shared.com/office/D3qMqwHF/as_identidades_do_brasil__de_v.html,
diz, muito acertadamente que D. Pedro II “precisava muito da história e dos
historiadores” (p. 25). O espaço de construção dessa história necessária à Dom
Pedro e às elites foi o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Reis
(op. cit) diz, citando Guimarães (1988) que “o imperador precisava de
historiadores para legitimar-se no poder”. Foi assim que em 1840 o IHGB estabeleceu
uma premiação para quem elaborasse um projeto de como deveria ser escrita a
história do Brasil. O alemão Karl Philipp Von Martius foi o vencedor desse
concurso propondo, em seu trabalho, que a escrita fosse feita a partir da
análise das raças, da mescla de raças se descobriria a essência do Brasil.
Francisco Adolfo de Varnhagen, um alemão que nasceu no Brasil, apoiado e a
serviço do Império, traduziu, num manual de história do Brasil o espírito da
proposta de Von Martius. Varnhagen propôs a análise das raças para que, a
partir disso, fosse encontrado o sentido da história do Brasil, que era seguir
da barbárie à civilização. O estado nativo, era o primitivo, o ser alcançado, a
civilidade luso-européia, da qual a monarquia era um modelo. Segundo Reis (op.
cit, p. 36) Varnhagen propunha nos seus capítulos sobre a história indígena, a
superação desse passado porque
o
presente-futuro do Brasil se assentaria em um outro passado, naquele que veio
do exterior para pôr fim a essa barbárie e selvageria interiores. Com a chegada
do cristianismo, do rei, da lei, da razão, da paz, da cultura, da civilização,
com a chegada dos europeus a este território, o Brasil surgiu e integrou-se no
seio da providência. (REIS, 2001, p. 37).
Foi exatamente nesse sentido que
caminhou a história do Brasil. Já, por algum tempo, ocupei-me do estudo da
história da história do Brasil. E, sobretudo no que diz respeito à história
ensinada, os manuais constituíam-se de narrativas com fins informativos-morais.
Desse modo, além do caráter quase religioso com que se tratavam certas
temáticas, as biografias de homens ilustres completava esse quadro de
preparação moral do brasileiro que devia servir ao Brasil. A história era como um
espelho que refletia grandes personagens, que pelo exemplo honroso, deviam ser
seguidos.
Foi dentro desse cenário de
representação que se construiu o Brasil historicamente, ou a história do Brasil.
Não estou jogando no lixo tudo o que se produziu então. Esse não é o meu papel.
O que estou propondo é a problematização dessa história, inclusive dos meios de
leitura dessa história, como é o caso do livro didático.
Em 1888, a pedido do imperador, D Pedro
II, que perderia o cargo no ano seguinte, ficou pronto o quadro “independência
ou morte” de Pedro Américo. Esse é um dos exemplos mais eloquentes de
construção da história com propósitos outros que não a história em si.
Como sabemos, a monarquia estava em
crise. Havia um movimento no Brasil, que não queria só a queda de D. Pedro II,
queria a queda da própria monarquia e a instauração da República. Então, ao
mesmo tempo em que os republicanos reproduziam imagens de um imperador caduco
e, consequentemente de uma monarquia ultrapassada, D. Pedro buscava a
construção de outra imagem, a de uma origem heroica da monarquia cujo heroísmo do
seu pai, Pedro I, poderia justificar a continuação do seu governo, em crise, e
permanência da monarquia, por consequência.
E fez-se uma verdade sobre a
independência
MEISSONIER, Ernest (1875). Batalha de Friedland, 1807. O louvor a Napoleão Bonaparte |
Construiu-se uma obra de arte com vistas
a identificar D. Pedro I, por solicitação de seu filho, Pedro II, com Napoleão
Bonaparte, o mito que fez da França um império. Então, seria D. Pedro I um
herói e a própria origem mitológica da monarquia brasileira, estaria alicerçada
nesse fato fundador, a bravura do primeiro monarca.
O quadro sobre o "Grito do Ipiranga", na verdade, é uma réplica do quadro de Ernest Meissonier, pintado em 1875 para homenagear Napoleão Bonaparte.
AMÉRICO, Pedro (1888). Em tempos de abolição da escravatura, das idéias liberais-republicanas, a busca de origens heróicas para o que não se sustenta mais por si. |
Contudo, José Murilo de Carvalho, em os esplendores da imortalidade diz:
De início, dom Pedro não podia montar a
besta gateada de que falam as testemunhas. O pedestre animal, apesar de ter
arcado com o peso imperial, teve o desgosto de se ver substituído no quadro
pela nobreza de um cavalo. Com maior razão, prossegue o pintor, o augusto moço
não podia ser representado com os traços fisionômicos de quem sofria as
incômodas cólicas de uma diarréia. Como se sabe, a diarréia fora o motivo da
parada da comitiva às margens do Ipiranga (um irreverente poderia acusar dom
Pedro de ter iniciado a poluição do desditoso riacho).
Poderia o professor de história negar o
conteúdo tradicional sobre a independência do Brasil? Minha resposta é não. Por
outro lado, não há sentido no estudo da história que não seja o de
desenvolvimento, no aluno, do espírito crítico que deve levá-lo à construção de
conhecimento. É o aluno, por minha mediação, que deve construir uma verdade
sobre a independência, e a história como um todo.
E é exatamente por isso que iniciei esse
texto criticando o livro didático. Ele entorpece alunos e professores. Os livros
didáticos constituem um mal exatamente por contribuírem mais com alienação de
alunos e professores do que com a reflexão crítica, fator mais importante no
processo ensino-aprendizagem. No caso dos alunos, o livro aliena porque às
vezes constitui embaraço à pesquisa; no caso dos professores, porque sobretudo
os professores incompetentes, estes são quase a maioria, tornam-se escravos do
livro didático.
Em atenção a um questionamento da Brenda Paula Leal Nunes, do IFG, quero fazer a seguinte ponderação. A referida aluna questionou que eu estava dando ênfase para a Cabanagem, como movimento popular do período regencial porque eu gostava do Pará, visto que ela sequer tinha ouvido falar desse movimento. Me pareceu coerente o argumento. E até gostei porque esse argumento é sintomático, ou seja, ele revela uma verdade.
Vejamos, falei em sala de aula de três movimentos: Revolta dos Malês, que sequer chegou às vias de fato, já que houve uma delação do movimento que resultou em repressão dos líderes, punidos com a morte ou com o degredo. A farroupilha que, lutando contra as taxações consideradas favoráveis à região do Prata, tentou criar uma república no Sul. Embora tenha havido luta, o governo resolveu a questão pela diplomacia, já que, diferente dos malês, esse era um movimento das elites sulistas, portanto, não precisava haver punições.
A cabanagem difere destes movimentos por duas razões; pelo propósito e por sua característica fundamental. Os cabanos constituíam a ralé da sociedade paraense, por conseguinte, seu movimento foi exatamente contra a opressão que pesava sobre a massa excluída. Então, foi a primeira e única vez na história do Brasil em que pessoas do povo chegaram ao poder e o mantiveram por um período de tempo considerado. Não era, diferente dos outros movimentos, uma luta das elites que usavam o povo em função de seus intereses sócio-econômicos e políticos; era uma luta do povo, liderado pelo povo. Assim, a característica popular e o propósito popular da Revolução Cabana é que a difere das demais.
Agora a Brenda, ou qualquer outra pessoa, poderia me perguntar porque essa história é pouca conhecida? Simplesmente, porque a história do Brasil é uma história construída, como tento demonstrar aqui, para atender determinados fins e esses fins nunca foram outros senão a auto-afirmação das elites que mandaram e mandam nesse país.
Em atenção a um questionamento da Brenda Paula Leal Nunes, do IFG, quero fazer a seguinte ponderação. A referida aluna questionou que eu estava dando ênfase para a Cabanagem, como movimento popular do período regencial porque eu gostava do Pará, visto que ela sequer tinha ouvido falar desse movimento. Me pareceu coerente o argumento. E até gostei porque esse argumento é sintomático, ou seja, ele revela uma verdade.
Vejamos, falei em sala de aula de três movimentos: Revolta dos Malês, que sequer chegou às vias de fato, já que houve uma delação do movimento que resultou em repressão dos líderes, punidos com a morte ou com o degredo. A farroupilha que, lutando contra as taxações consideradas favoráveis à região do Prata, tentou criar uma república no Sul. Embora tenha havido luta, o governo resolveu a questão pela diplomacia, já que, diferente dos malês, esse era um movimento das elites sulistas, portanto, não precisava haver punições.
A cabanagem difere destes movimentos por duas razões; pelo propósito e por sua característica fundamental. Os cabanos constituíam a ralé da sociedade paraense, por conseguinte, seu movimento foi exatamente contra a opressão que pesava sobre a massa excluída. Então, foi a primeira e única vez na história do Brasil em que pessoas do povo chegaram ao poder e o mantiveram por um período de tempo considerado. Não era, diferente dos outros movimentos, uma luta das elites que usavam o povo em função de seus intereses sócio-econômicos e políticos; era uma luta do povo, liderado pelo povo. Assim, a característica popular e o propósito popular da Revolução Cabana é que a difere das demais.
Agora a Brenda, ou qualquer outra pessoa, poderia me perguntar porque essa história é pouca conhecida? Simplesmente, porque a história do Brasil é uma história construída, como tento demonstrar aqui, para atender determinados fins e esses fins nunca foram outros senão a auto-afirmação das elites que mandaram e mandam nesse país.
Bibliografia:
CARVALHO, José Murilo de. Os esplendores
da imortalidade. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_6_2.htm,
(acesso em setembro de 2012).
REIS,
José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 4ª Ed. São Paulo: FGV,
2001.
GUIMARÃES,
Manoel Luiz Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de
uma história nacional. Estudos históricos. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.
Indicação de
pesquisa:
OLIVIERI, Antonio Carlos. Independência
ou morte! A representação idealizada de um fato histórico. Disponível em http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1689u25.jhtm
(acesso em setembro de 2012).
O grito do Ipiranga aconteceu como no quadro? HowStuffWorks
Brasil. Disponível em http://pessoas.hsw.uol.com. br/ipiranga.htm (acesso em setembro
de 2012).