Estes
dias, em Piraquê-TO, lugar de parte da minha infância, passei um tempo
agradável com pessoas muito queridas daquele passado, alegre, triste e, sobretudo, saudoso. Foi um
destes momentos, recorrentes ultimamente, em que me debruço sobre o passado à
procura de alguma coisa. Desta feita, encontrei o lugar do rádio na minha
infância. Não do rádio enquanto aparelho, mas das realidades do rádio. As noites da
turma da maré mansa; os fins de semana esportivos com comentaristas cujos nomes
já esqueci, exceto do José Carlos Araújo, narração especialmente vibrante dos
gols do meu flamengo do Zico e todos os dias, a semana inteira, a minha grande
paixão, a Tia Leninha do Encontro com a
Tia Leninha.
Mas
como dizia estive em Piraquê e lá, entre outros, conversei longamente com o seu
Bola, a dona Maria do Pedão e minha Vó Orozina, que nem é minha vó nem Orozina,
mas Orozimba e tia-avó. Da minha parte havia um interesse acadêmico em tudo o
que ouvi. Mas a ciência, pelo menos o campo histórico que se interessa pela anamnese,
é humanizada suficiente para subjetivar a pratica historiográfica a ponto de
por pesquisador e objeto de pesquisa num pertencimento a partir do qual o
primeiro, pesquisador, não possa dar sentido ao segundo, objeto de pesquisa,
senão pela relação intimista entre ambos. O passado é significado pela memória,
sentimento, que tenho desse passado. Então não tratou-se de uma pesquisa, no
sentido estrito da palavra. Tratou-se, antes, de encontros. Encontro, no quarenta e nove da minha infância[1], com
minha vó, a quem quero muito bem. Encontro com seu bola, e a memória viva do
carro de boi que lentamente, e sob o sol escaldante, o precedia na fazenda São
José e nas ruas de piçarra do Piraquê. Encontro com a Dona Maria do Pedão,
aquela senhora da fazenda depois cemitério, por onde o tempo quase parou.
E
aquilo que ouvia se misturava às imagens e sons que me vinham à memória, como
se o próprio tempo quisesse retroceder.
Existem
muitas coisas daquele tempo que me recuso lembrar, embora não tenha esquecido[2]. E
existem muitas coisas daquele tempo que me recuso esquecer, embora não possa
lembrar em sua inteireza. E entre aquilo, da minha infância, de que jamais
poderei esquecer o programa de rádio “Encontro com a Tia Heleninha” é
destacado.
Lembro
de muita gente que trabalhou, ou trabalha na Rádio Nacional da Amazônia à
época: os apresentadores José Neres, Paulo Torres, Artemisa Azevedo, o Walter
Lima, Adelson Moura, Maurício Fares, Luiza Inês e, claro, a Tia Leninha, como a
chamávamos. Não sei, sinceramente, se outra voz ecoará tão viva em meu coração
quanto a da Tia Heleninha.
Encontro
com Tia Heleninha começou ir ao ar 1979. Passei a ouvi-lo por volta de 1983,
com oito anos de idade. Morava, naquele tempo, na fazenda São José, do Zeca
Batista. Era histórias e radionovelas maravilhosas. Conheci, ainda analfabeto,
todos os clássicos da literatura infantil. Nos encantamos, meus irmãos e eu, com
a novela infantil “A História do Dito Gaioleiro”, que contava a história de um menino que vivia
matando e prendendo pássaros e que, com outros meninos da cidade, vivem uma
experiência incrível ao encontrarem o “nêgo véio”, um mágico que o fazem embarcarem
numa viagem fantástica onde aprenderam a respeitar e cuidar dos bichos. Depois veio
Poliana e Poliana Moça, a menina do jogo do contente. Depois vieram outras
radionovelas, muitas estorinhas infantis e muitos, muitos conselhos sobre a
importância dos estudos, do respeito aos pais e aos irmãos. A Tia Heleninha
dizia aquilo que nossos pais, daquele tempo e lugar, não consideravam
importante de se dizer.
Em
1988, acho que foi nesse ano, fomos morar em Cajazeiras, no Pará. Lá, fazendo
uso de um motor rádio, também ouvíamos o encontro com a Tia Leninha. Era um
lugar quase bárbaro. Raros eram os dias em que não haviam assassinatos na
cidade em seus arredores. A luta pela terra era uma guerra, e além da violência
dessa luta, haviam aqueles que matavam pelo calor da cachaça, e os que matavam
por que eram degenerados mesmo. O encontro com Tia Heleninha, nessa selva de
sangue e trabalho duro, era quase que o último espaço da infância que nos
restava.
No
final de 1990 voltamos àquela parte de Goiás que dois anos antes, em 05 de
outubro de 1988, havia se tornado Tocantins. Na mudança, as poucas coisas e
mulambos ensacados, nosso motor rádio quebrou-se. Muitas coisas quebraram-se
naquela viagem. Em Piraquê, nem sempre moramos na fazenda São José, mas mesmo
quando mudamos para a Vila ainda significava marar na roça, porque era isso que
o Piraquê era, uma roça. Em cajazeiras, uma vilazinha que pertencia ao município
de Itupiranga, residíamos na área rural. Mas naquele ano, na nossa terceira
mudança, sem a Tia Heleninha, pela primeira vez passei a morar numa cidade. Era
pequena, mas era uma cidade com os males da cidade. Saudosamente deixei de
ouvir a Tia Heleninha. Havia a televisão, na casa da Tia Maria da Luz e de
outros vizinhos, e haviam as outras coisas da cidade. Mas não havia mais Tia
Heleninha, nem a Rádio Nacional da Amazônia.
Em
1994 ingressei no Seminário Menor Leão XIII, em Tocantinópolis-TO. Algum tempo
depois, em 1996, já seminarista da Diocese de Conceição do Araguaia, fui para o
seminário maior em Belém-PA, onde estudei filosofia.
Sai
do seminário em 2000 e fui morar em Goiânia, Goiás. Foi o ano da grande
solidão. Naquele mesmo ano, o tempo da grande depressão, estive no prédio da Radiobras,
em Brasília, para realizar o meu sonho infantil, conhecer a Tia Heleninha. Fui bem
recebido, mas, conforme me informaram, a apresentadora transmitia de São Paulo,
cidade onde tinha passado a residir.
Em
2003 fui morar em Niquelândia, onde passei a trabalhar como professor da
educação básica. E em 2007 mudei para Goiânia. No ano seguinte, depois de
aprovado em concurso, fui morar no Pará, em São João do Araguaia, de onde
mudei, no ano seguinte, para Marabá. Em 2012 retornei a Goiás.
No
meio dessa andança, passando as férias de julho de 2008 com familiares em
Brasília, fiz uma nova tentativa de encontrar a Tia Leninha. Fiquei sabendo, em
15 de julho de 2008 que Helena Ardito Bortone, a Tia Heleninha, havia falecido
em 26 de junho daquele mesmo ano. Fiquei chocado com a informação. Me pareceu,
e ainda parece, muito injusto que a morte tire do nosso convívio pessoas tão
significativas socialmente como a Tia Leninha. Mas aconteceu.
Andarilho, muita gente me pergunta de onde sou.
Mas nunca tenho uma reposta adequada a apresentar. Sei que me perguntam por que
não sabem qual o meu lugar. Essa se tornou, até a mim, uma pergunta insistente.
Mas, de verdade, não sei qual o meu espaço nesse mundo e, por isso, quanto mais
me perguntam, mais fico confuso e atordoado com esse drama. Acho que não tenho
um lugar, nem sou de um lugar. Mas, existem
memórias que situam a minha passagem nesse mundo. Uma dessas memórias é a da
Tia Heleninha e da Rádio Nacional da Amazônia.
Era,
e ainda é, uma rádio para um povo camponês quase isolado. Ela chega onde o
telefone não chega, ela representa a comunicação que a televisão não pode
representar. Não se trata de ouvir. É mais que isso. É comunicação. A Tia
Heleninha era peça de uma grande engrenagem que procurava entender e domesticar
o sertão. É disso que fui feito, de mata, de rios, de bichos e de gente brada.
[1]
É incrível como essa expressão “quarenta e nove da minha infância” é carregada
de sentido para uma grande parte da minha família, principalmente aqueles com
infância contemporânea, ou quase, á minha.
[2]
Como a cena, bárbara demais para uma criança, do corpo de seu Chição
estraçalhado de balas e faca, vísceras expostas no interior do Salão do Chição, que era outro Chição.