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terça-feira, 1 de maio de 2012

História da África e Cultura Afro-Brasileira em Sala de Aula


Considerações no contexto de formação[1]

A valorização da cultura afro no espaço escolar também
é atribuição docente.
A aprovação da Lei 10639/2003, que instituiu os trabalhos com a história e a cultura africana no currículo escolar, suscitou uma série de debates a cerca do conteúdo, das competências e habilidades demandadas por esse dispositivo legal. Requereu-se das escolas, e dos docentes, um novo posicionamento frente à temática. No entanto, são muitos os desafios que se interpõem a uma efetiva prática docente no sentido de tornar a Lei exequível. Reconhece-se, todavia, a disposição da Lei em impor um deslocamento da visão simplista com que se tem pensado a questão negra no Brasil em favor de um posicionamento que reconheça o papel do negro na constituição do país; que torne visível o racismo, para poder combatê-lo; que reconheça toda a diversidade cultural, e a contribuição das matrizes africanas para com essa diversidade. Nesse sentido, ao se propor essa temática como foco de discussão para esse nosso encontro se pretende que aqui, no encontro de professores e professoras da área de história, possamos problematizar a nossa prática e, ao mesmo tempo, formular pressupostos de superação dos dilemas relacionais à questão negra na sala de aula.
Marc Ferro (1983) afirma com muita propriedade que “a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos, está associada à história que nos ensinaram quando éramos criança”, segundo o historiador, essa história ensinada desde cedo “nos marca para o resto da vida”. É evidente, portanto, que a forma como a sociedade brasileira pensa o negro em nosso país está relacionada com a nossa própria prática de ensino, como ensinamos nossos discentes, inclusive negros, a pensar o negro. Nesse sentido, várias são as questões que poderiam ser propostas para a problematização da nossa prática pedagógica. De início, é preciso admitir que a Lei 10.639/2003 foi criada num contexto de política afirmativa, ou seja, a sua edição visou, antes de tudo, corrigir uma falha do próprio sistema de ensino que, na visão dos seus idealizadores, tinha uma dívida histórica para com os afro-descendentes. E essa dívida, verdade seja dita, foi construída com a nossa contribuição, historiadores que, mais de uma vez, fomos envolvidos num projeto de nação pensada a partir da Europa. 
Um dos aspectos a ser debatido diz respeito aos padrões estéticos.
É preciso valorizar a beleza negra. É preciso deixar o negro aparecer.

Para Ciro Flamarion Cardoso (1988), até a primeira metade da década de 80 do século XX a história fazia uma representação marginal do negro. Analisando os trabalhos de historiadores como Caio Prado e Celso Furtado, em relação aos quais há quase uma unanimidade quanto a importância dos seus trabalhos para o entendimento da história do Brasil, Cardoso avalia que o negro aparece nessas escritas da história como acessório de determinados modelos de produção econômica. O ponto de partida, quando se fala do negro, não é o negro enquanto sujeito da história, mas o negro enquanto mão-de-obra, eixo temático das narrações históricas. Para o autor, houve uma tendência de explicação da produção econômica no Brasil, que empregava mão-de-obra escrava, como se a dinâmica em todos os lugares seguisse o mesmo padrão, variando apenas o tipo de atividade desenvolvida, e não os diversos contextos. Para ele, esse modelo de narração histórica deveria considerar, primeiramente “a diferenciação das estruturas produtivas baseadas no trabalho escravo”. (CARDOSO, 1988:35).
Para Cardoso (op. cit.) haviam graves lacunas na historiografia brasileira no que diz respeito ao escravo e à escravidão. As lacunas, por si, indicam uma tendência de marginalização da história da escravidão e do escravo. Não interessa os marginais. Interessa a economia e o colonizador; depois, com a independência e com a República, interessava o progresso e uma identidade nacional, livre desse mal que antes havia sido necessário. 
Estabeleceu-se a Lei como tentativa de reparação da dívida do próprio Estado para com milhões de brasileiros. Mas, como sabemos, uma coisa é a Lei, outra as possibilidades para a sua aplicação. Desse modo, duas questões se impõem: a formação docente do profissional da área de história e o material didático disponibilizado nas escolas para se trabalhar com essa temática. 
No que diz respeito à formação docente, nesse aspecto é deficiente porque somos professores eurocentristas porque nossa formação também o foi. O modelo de história antiga, média, moderna e contemporânea segue a noção de progresso contínuo da civilização branca européia; e depois, essa forma de pensar a história no espaço acadêmico foi transposta para o espaço da sala de aula, de modo que seguimos, em nossas aulas, o mesmo modelo de ensino que, salvo poucas exceções, nos foi imposto durante a nossa própria formação. 
Especialista em estudos afro, Munanga Kabengele (2005) considera que a formação de professores que não tiveram em sua base de formação a História da África, a cultura do negro no Brasil e a própria história do negro de um modo geral se constitui no problema crucial das novas leis que implementaram o ensino da disciplina nas escolas. E isso não simplesmente por causa da falta de conhecimento teórico, mas, principalmente, porque o estudo dessa temática implica no enfrentamento e derrubada do mito da democracia racial que paira sobre o imaginário da grande maioria dos professores.
Muito reproduzida nos livros didáticos, essa imagem que inferioriza
o negro possibilita a discussão sobre sua função enquanto mediadora
de aprendizagem.
No que diz respeito aos livros didáticos e a forma como abordam a história e cultura afro, além circunscrever a temática a poucas linhas ainda a apresentam sob um viés europeu, bem próprio do que Edward Said chamou de orientalismo[2]. Esse ciclo, formação e material de apoio ao trabalho docente se fecha quando olhamos para a produção acadêmica que se põe como suporte à formação continuada. Nesse caso, existem vários artigos, livros e pesquisas que discutem a formação de professores (CATANI, 1997; BRZEZINSKI, 1996; BUENO; CATANI; SOUSA, 1998; PIMENTA, 1995; NÓVOA, 1992; PERRENOUD, 2002), mas muito pouco no que se refere à articulação desta com a Cultura e História Negra e Africana. Isto se deve ao fato de que cursos desta natureza ainda são incipientes no quadro educacional brasileiro e só passaram a ter relevância no momento em que obtiveram o status de obrigatórios, instituído pela Resolução nº 01/04 do CNE, que exige a inclusão da temática tanto na formação inicial como na formação continuada de professores. 
É preciso ponderar, no entanto, que se há uma dificuldade de acesso a informações escritas sobre a África, e sobre a própria história cotidiana, e de resistência dos negros no Brasil (CARDOSO, 1988:41), então vias alternativas fazem-se necessárias. O conhecimento da história e valorização da cultura afro só se desvela a partir de fontes e leituras alternativas. Só se acessa a história dos marginais (SCHMITT, 2001) quando há uma alteridade que desloca a oposição do seu nível hierárquico para um novo sentido em que a descoberta da diferença não implique juízo de valor. 
Toda sociedade tem, em seu interior, os seus marginalizados, aqueles aos quais se nega o direito à história. Assim, quando se tem como objeto os negros, ou uma minoria, a temática em questão é a história marginal, porque foram excluídos da história. A resignificação da nossa prática, o que também pode ser feito a partir desses momentos formativos, deve contribuir para com a visibilidade destes segmentos negados pela tradição histórica.

Bibliografia:

BRZEZINSKI, Iria. Pedagoga, pedagogos e formação de professores: busca e movimento. Campinas: Papirus, 1996. 
BUENO, Belmira Oliveira; CATANI, Denice Barbara; SOUSA, Cyntia Pereira. A vida e o ofício dos professores: formação contínua, autobiografia e pesquisa em colaboração. São Paulo: Escrituras Editora, 1998.
CARDOSO, Ciro Flamarion. A escravidão no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988.
CATANI, Denice Barbara. (Org.) Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escritura, 1997.
FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: Ibrasa, 1983.
NÓVOA, Antônio. Formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, Antônio. Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. 
PERRENOUD, Philippe. A prática reflexiva no ofício de professores: Profissionalização e Razão Pedagógica. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
PIMENTA, Selma Garrido. O estágio na formação de professores: unidade teoria e prática? São Paulo: Cortez, 1995.
MUNANGA. K. Lei 10.639/03: depoimento. In: CASTRO, Fabio de. Entrevista. São Paulo: 2005. Disponível em: . Acesso: 29 abr. 2012.
SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques.  A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.


[1] Texto elaborado para o 3º encontro de 2012 dos professores em formação, 4ª ure, Marabá. Também disponível em: www.amigodahistoria.blospot.com.
[2] O Oriente como invenção do Ocidente.