Texto de Vanessa Barbara
publicado no The New
York Times,em 17 de novembro de 2015
A manipulação dos fatos consumida como verdade absoluta. |
Esse número pode parecer exagerado, mas
basta andar por uma quadra para que pareça conservador. Em todo lugar aonde vou
há um televisor ligado, geralmente na Globo, e todo mundo a está assistindo
hipnoticamente.
Sem causar surpresa, um estudo de 2011
apoiado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que
o percentual de lares com um aparelho de televisão em 2011 (96,9) era maior do
que o percentual de lares com um refrigerador (95,8) e que 64% tinham mais de
um televisor. Outros pesquisadores relataram que os brasileiros assistem em
média quatro horas e 31 minutos de TV por dia útil, e quatro horas e 14 minutos
nos fins de semana; 73% assistem TV todo dia e apenas 4% nunca assistem
televisão regularmente (eu sou uma destes últimos).
Entre eles, a Globo é ubíqua. Apesar de
sua audiência estar em declínio há décadas, sua fatia ainda é de cerca de 34%.
Sua concorrente mais próxima, a Record, tem 15%.
Assim, o que essa presença onipenetrante
significa? Em um país onde a educação deixa a desejar (a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico classificou o Brasil recentemente em 60º
lugar entre 76 países em desempenho médio nos testes internacionais de
avaliação de estudantes), implica que um conjunto de valores e pontos de vista
sociais é amplamente compartilhado. Além disso, por ser a maior empresa de
mídia da América Latina, a Globo pode exercer influência considerável sobre
nossa política.
Um exemplo: há dois anos, em um leve
pedido de desculpas, o grupo Globo confessou ter apoiado a ditadura militar do
Brasil entre 1964 e 1985. “À luz da História, contudo”, o grupo disse, “não há
por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim
como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram
desse desacerto original”.
Com esses riscos em mente, e em nome do
bom jornalismo, eu assisti a um dia inteiro de programação da Globo em uma
terça-feira recente, para ver o que podia aprender sobre os valores e ideias
que ela promove.
A primeira coisa que a maioria das
pessoas assiste toda manhã é o noticiário local, depois o noticiário nacional.
A partir desses, é possível inferir que não há nada mais importante na vida do
que o clima e o trânsito. O fato de nossa presidente, Dilma Rousseff, enfrentar
um sério risco de impeachment e que seu principal oponente político, Eduardo
Cunha, o presidente da Câmara, está sendo investigado por receber propina,
recebe menos tempo no ar do que os detalhes dos congestionamentos. Esses
boletins são atualizados pelo menos seis vezes por dia, com os âncoras
conversando amigavelmente, como tias velhas na hora do chá, sobre o calor ou a
chuva.
A partir dos talk shows matinais e
outros programas, eu aprendi que o segredo da vida é ser famoso, rico,
vagamente religioso e “do bem”. Todo mundo no ar ama todo mundo e sorri o tempo
todo. Histórias maravilhosas foram contadas de pessoas com deficiência que
tiveram a força de vontade para serem bem-sucedidas em seus empregos.
Especialistas e celebridades discutiam isso e outros assuntos com notável
superficialidade.
Eu decidi pular os programas da tarde –a
maioria reprises de novelas e filmes de Hollywood– e ir direto ao noticiário do
horário nobre.
Há dez anos, um âncora da Globo, William
Bonner, comparou o telespectador médio do noticiário “Jornal Nacional” a Homer
Simpson –incapaz de entender notícias complexas. Pelo que vi, esse padrão ainda
se aplica. Um segmento sobre a escassez de água em São Paulo, por exemplo, foi
destacado por um repórter, presente no jardim zoológico local, que disse
ironicamente “É possível ver a expressão preocupada do leão com a crise da
água”.
Assistir à Globo significa se acostumar
a chavões e fórmulas cansadas: muitos textos de notícias incluem pequenos
trocadilhos no final ou uma futilidade dita por um transeunte. “Dunga disse que
gosta de sorrir”, disse um repórter sobre o técnico da seleção brasileira. Com
frequência, alguns poucos segundos são dedicados a notícias perturbadoras, como
a revelação de que São Paulo manteria dados operacionais sobre a gestão de
águas do Estado em segredo por 25 anos, enquanto minutos inteiros são gastos em
assuntos como “o resgate de um homem que se afogava causa espanto e surpresa em
uma pequena cidade”.
O restante da noite foi preenchido com
novelas, a partir das quais se pode aprender que as mulheres sempre usam
maquiagem pesada, brincos enormes, unhas esmaltadas, saias justas, salto alto e
cabelo liso. (Com base nisso, acho que não sou uma mulher.) As personagens
femininas são boas ou ruins, mas unanimemente magras. Elas lutam umas com as
outras pelos homens. Seu propósito supremo na vida é vestir um vestido de
noiva, dar à luz a um bebê loiro ou aparecer na televisão, ou todas as opções
anteriores. Pessoas normais têm mordomos em suas casas, que são visitadas por
encanadores atraentes que seduzem donas de casa entediadas.
Duas das três atuais novelas falam sobre
favelas, mas há pouca semelhança com a realidade. Politicamente, elas têm uma
inclinação conservadora. “A Regra do Jogo”, por exemplo, tem um personagem que,
em um episódio, alega ser um advogado de direitos humanos que trabalha para a
Anistia Internacional visando contrabandear para dentro dos presídios materiais
para fabricação de bombas para os presos. A organização de defesa se queixou
publicamente disso, acusando a Globo de tentar difamar os trabalhadores de direitos
humanos por todo o Brasil.
Apesar do nível técnico elevado da
produção, as novelas foram dolorosas de assistir, com suas altas doses de
preconceito, melodrama, diálogo ruim e clichês.
Mas elas tiveram seu
efeito. Ao final do dia, eu me senti menos preocupada com a crise da água ou
com a possibilidade de outro golpe militar –assim como o leão apático e as
mulheres vazias das novelas.