Recentemente li duas análises, complementares entre si, sobre a mobilização da sociedade contra os abusos das políticas públicas ligadas ao transporte público em São Paulo. Sob o título de El malestar social se extiende en Brasil o jornal espanhol El País, em matéria de María Martín, faz uma sóbria análise de conjuntura sobre os protestos em São Paulo evidenciando as conexões desse clamor com um contexto bem mais amplo que o aumento de R$ 0,20, valor de um chiclete, na passagem. Outra análise bastante apurada foi a do professor Henrique Carneiro, publicada nas redes sociais, à qual passo a reproduzir.
O autoritarismo não tolera o direito à informação. |
Cada ônibus em São Paulo e em todo o
país tem algo de camburão e de navio negreiro, como diz um rap da periferia. Ir
ao trabalho como um condenado, esmagado, brutalizado como gado, é a regra dos
ônibus, trens e metrô de São Paulo.
E o preço disso é superior ao das capitais europeias! Um dólar e meio, sem bilhete de um dia inteiro ou desconto pra dez passagens. Nem bilhete válido indefinidamente para o mês inteiro, garantido em muitos países pelo próprio Estado ou pelas empresas para os funcionários.
O Passe Livre como direito social foi uma bandeira que o próprio PT chegou a levantar na campanha da Erundina. Depois, não só ela, como prefeita, abriu mão da proposta, como se dedicou juntamente ao partido, a desmontar e a privatizar a CMTC, que era a companhia municipal de ônibus urbanos.
Os empresários que tomaram o controle do transporte público o tornaram um assunto privado, sem transparência, mas com apoio do dinheiro público, por meio de subsídios. Mais recentemente outros benefícios como isenções fiscais foram dadas pelo governo federal.
Quanto lucram as empresas? Qual a margem de lucro com os 20 centavos de aumento e sem eles?
Por que não voltar a ter uma companhia municipal de transportes? Não, ao contrário, até o metrô querem privatizar e a linha amarela já é de uma concessionária privada.
Haddad foi eleito pelas promessas em relação ao transporte público. Não só não veio ainda bilhete único, como a modalidade que se promete não fará muita diferença no poder aquisitivo popular devido ao preço elevado que terá.
O comportamento pusilânime do prefeito que no primeiro conflito social preferiu, ao invés de se dirigir aos seus eleitores, respeitá-los e atendê-los em suas justas reivindicações, se juntar ao governador e a PM para lançar 400 bombas de gás e 300 tiros de borracha contra manifestantes pacíficos em 13 de junho de 2013 desencadeou algo há muito não visto na cidade e em todo o país: uma revolta popular!
O que está acontecendo agora saiu do controle de qualquer movimento organizado e se tornou a expressão de um desabafo secular. O povo pobre de São Paulo, as periferias, os rappers, as torcidas organizadas, os motoqueiros, os estudantes, os professores, os sem-teto e os sem-carro vão se juntar na expressão de um grito de revolta que está há muito tempo contido!
Foi um desafio ao povo de São Paulo, com velhinhas levando balas de borracha, carros parados com crianças sufocados em gás, jornalistas atingidos de propósito com tiros e atropelamentos e o povo tratado a tiros, bombas, cassetetes, prisões em massa arbitrárias e ilegais. Um verdadeiro estado de sítio onde quem se mexesse ou ficasse parado recebia tiros e pancadas do mesmo jeito!
O desabafo agora não é só por 20 centavos, mas contra a polícia mais violenta do mundo, contra a maior taxa de homicídios do planeta, contra o lucro empresário mais selvagem, contra a predação da floresta e o assassinato dos indígenas para o agronegócio, contra a repressão aos jovens, negros, pobres, maconheiros, homossexuais, punks ou rastafáris. E acima de tudo, contra a ausência de espaço. Espaço físico, a própria cidade, sequestrada pela especulação imobiliária, pelas máfias do transporte precário, pela PM terrorista, e também o espaço político, sequestrado pela privatização do Estado, pela loteria dos cargos e dos partidos.
O caso brasileiro se agrava pelo fato do PT ter sido o depositário das esperanças de uma geração e tê-las traído de uma forma sistemática em todos os campos possíveis. Na política financeira, deram metade do orçamento para os bancos. Na política agrícola, abriram as porteiras para o agronegócio derrubar a floresta, espalhar transgênicos, matar índios, inundar de veneno os rios e construir barragens ecocidas na Amazônia. Na política internacional, mandaram tropas ao Haiti, defenderam empreiteiras na África e abriram o país para multinacionais. Privatizaram o petróleo, os portos, aeroportos, e deram verbas públicas para o ensino privado. Aliaram-se com as oligarquias, todas elas! Sarney, Renan, Alves, Barbalho, e com a direita evangélica. Deram ministérios para bispos e distribuíram concessões de rádio e TV a rodo para os piores fascistas travestidos de pastores.
Diante disso tudo, o mistério continua sendo por que a juventude brasileira demorou tanto para se rebelar?
O clima internacional há muito ia nesta direção, o estranho era um país com a tradição de luta estudantil e juvenil como o Brasil ainda não ter entrado em massa nos protestos indignados internacionais. Pois agora entrou!
O curso que esse movimento vai ter
depende como nunca de um dia histórico. Um daqueles eventos que decidem o
destino nacional. Nunca uma passeata foi tão aguardada como a da próxima
segunda-feira.
Há uma ansiedade de final de campeonato, onde, pela primeira vez as ruas são mais empolgantes do que qualquer campeonato de futebol.
O futebol no Brasil, sempre tão bem usado como amortecedor social, como narcótico social, chega agora no auge da sua operacionalização político publicitária, com um aliado de torturadores na CBF servindo pra uma presidente ex-torturada gastar bilhões com seus aliados de construtoras, dando nomes de marcas de cerveja para estádios, fazendo das regras da FIFA uma verdadeira agressão à soberania nacional, serve de pano de fundo para uma empreitada de especulação imobiliária, higienismo e gentrificação urbana, mas, de repente, ocupa também um espaço de rebelião social. Desde a abertura que a Copa das Confederações está ofuscada na emotividade popular por um conflito mais real que se desenvolve no país.
O ato de segunda-feira, 17 de junho de 2013, pode reunir várias dezenas de milhares de pessoas que vão querer exercer o seu direito constitucional de ocupar a rua e ir até a Avenida Paulista. Se o ato não for reprimido ele vai ser uma linda festa popular vitoriosa que antecipará a vitória do cancelamento do aumento!
O governo municipal, se tivesse um mínimo de sensibilidade oriunda dos tempos há muito passados da origem do PT, iria se diferenciar do governo estadual do PSDB, recuar no aumento, e Haddad poderia até ter o seu minuto populista de glória para redimir o sangue que já tem nas mãos de feridos e mutilados da repressão do dia 13 de junho que ele convocou e legitimou.
O governo estadual de Alckmin parece querer ter vocação para Mubarak. Se houver nova repressão violenta, se a polícia tentar a atitude fascista de buscar impedir dezenas de milhares de manifestantes de marcharem pelas ruas com tropas de choque, estarão desencadeando uma justa ira popular.
Segunda-feira será um momento chave de definições de campos e posições. De qual lado das barricadas estarão os partidos e os políticos vai definir se estarão ao lado do povo ou contra ele.
Poucas vezes o povo brasileiro saiu em uníssono clamor popular por uma causa. Quando isso acontece, é bom levar a sério a determinação popular. Por isso, governantes, abaixem o preço da passagem ou serão condenados pela história como os algozes do povo!