Por Carlos Liria[1]
Em defesa
de Cuba e à memória de Paul Lafargue
“O trabalho
ocupa todo o tempo e nada resta dele
para a República e para os amigos.”
para a República e para os amigos.”
Xenofonte
A 13 de Agosto
de 1866, Karl Marx escreveu a seguinte carta ao noivo de sua filha Laura, um
cubano chamado Paul Lafargue:
“Você permitir-me-á fazer-lhe as seguintes
observações:
1º Se quer continuar as suas relações com minha filha
terá que reconsiderar o seu modo de «fazer a corte». Sabem bem que não há
compromisso definitivo, que tudo é provisório; mas mesmo que ela fosse sua
prometida em devida forma, não deveria esquecer-se que se trata de um assunto a
longo prazo. Por isso, a intimidade excessiva está completamente deslocada,
tendo-se em conta que os noivos terão de habitar a mesma cidade por um período
necessariamente prolongado de purgatório e rudes provas (...). A meu juízo, o
amor verdadeiro manifesta-se na reserva, na modéstia e, inclusivamente, na
timidez do amante perante o seu ídolo, não na liberdade da paixão e nas
manifestações de uma familiaridade precoce. Se você defende o seu temperamento
crioulo, é meu dever interpor a minha razão entre esse temperamento e a minha
filha (...).
2.º Antes de estabelecer definitivamente suas relações
com Laura necessito de sérias explicações sobre a sua situação económica.
A minha filha supõe que estou ao corrente dos seus
assuntos. Está enganada. Não coloquei ainda este assunto na mesa porque, a meu
ver, essa iniciativa deveria ter sido tomada por si. Você sabe bem que
sacrifiquei toda a minha fortuna nas lutas revolucionárias. Não me arrependo
nada disso. Se tivesse que recomeçar a minha vida faria o mesmo (...). Porém,
em tudo o que esteja nas minhas mãos, quero livrar a minha filha dos escolhos
com que se defrontou a sua mãe” (1).
Além do seu
“temperamento crioulo”, Marx reprova também ao seu futuro genro uma certa
tendência para a preguiça: “a observação demonstrou-me que você não é
trabalhador por natureza, apesar de toda a sua boa vontade e dos seus acessos
de actividade febril”.
O autor do
‘Manifesto Comunista’ não podia por então suspeitar a extraordinária relevância
que iria ter para o destino do socialismo o assunto que acabava de mencionar: a
preguiça.
1. Socialismo e
cultura proletária.
Sem dúvida, Marx
também não podia suspeitar do naufrágio antropológico e da insólita degradação
moral que trariam no futuro à tradição comunista os intentos estalinistas,
maoistas e coreanos de instaurar uma “cultura proletária”, um “culto do
trabalho” sob o imperativo da industrialização a passo forçado. É bem certo que
a industrialização (concebida como um “grande salto em frente” para o qual não
haveria que poupar nos custos humanos) era exigida pela correlação de forças
internacional, na qual o “socialismo real” se via obrigado a competir com o
capitalismo ou resignar-se a ser aniquilado. Sobre isto estavam todos de acordo,
ainda que se discutissem os ritmos e os meios. Em 1920, no IX Congresso do
Partido, Trotsky mostrou-se inclusivamente um adepto resoluto da militarização
do trabalho e dos sindicatos.
“Há que dizer
aos operários qual o lugar que devem ocupar, deslocando-os e dirigindo-os como
se fossem soldados... A obrigação de trabalhar alcança o seu mais alto grau de
intensidade durante a transição do capitalismo ao socialismo... Os ‘desertores’
do trabalho deverão ser incorporados em batalhões disciplinares e enviados a
campos de concentração” (...) “A militarização é impensável sem a militarização
dos sindicatos como tais, sem o estabelecimento de um regime em que cada
trabalhador se considere um soldado do trabalho, que não pode dispor livremente
de si próprio; se recebe uma ordem de transferência, deve executá-la; se não a
executa será um desertor e castigado em consequência. E quem se encarregaria
disso? O sindicato. O sindicato cria o novo regime. É a militarização da classe
trabalhadora” (2).
Estes arrazoados
de Trotsky fazem estremecer pela sua clareza e pela sua contundência; nem
sequer morde a língua ao fazer uma apologia do trabalho forçado e,
inclusivamente, da “utilidade” do esclavagismo: “Será realmente verdade que o
trabalho obrigatório é sempre improdutivo?... Estamos aqui perante o
preconceito liberal mais lamentável e miserável: os rebenhos de escravos também
eram produtivos (...), o trabalho obrigatório dos escravos foi no seu tempo um
fenómeno progressista” (ibidem, pág. 354).
Como é sabido, o
Partido negou-se então a seguir o caminho proposto por Trotsky: a militarização
do trabalho não pode justificar-se – concuíu-se então – senão em caso de
guerra. Pois bem, à vista da história posterior do século XX, um certo
trotskismo poderia talvez perguntar ainda: E quando deixou a URSS de estar em
guerra, entre 1920 e 1991? Trotsky, ao menos, era partidário de falar claro, de
dizer a verdade: estão assim as coisas, assim devemos proceder. Ou
proletarizamos e industrializamos a URSS de forma massiva ou perdemos a
(próxima) guerra (que será tanto mais iminente quanto maior fraqueza
mostrarmos).
Nesses momentos,
Estaline inclinou-se para uma posição mais moderada (tal como Lenine). Contudo,
após o parêntesis aberto pela NEP (3), também ele optará pela
superindustrialização a todo o transe, ultrapassando inclusive as antigas
propostas trotskistas. Com a diferença que Estaline já não se podia permitir
dizer a verdade. “Ao terror, Lenine e Trotsky chamaram terror; chamaram
repressão à repressão e fome à fome” (4). Estaline, pelo seu lado,
proletarizou o campo soviético pretendendo que “existia um movimento
‘espontâneo’ da ‘maioria esmagadora’ dos camponeses pobres em direcção a formas
colectivas de exploração agrícola. Da noite para o dia os camponeses tinham-se
feito entusiastas da colectivização” (5). Em Novembro de 1929, o Comité
Central constatou que existia essa aspiração popular generalizada; a 5 de
Janeiro de 1930, ditou o decreto de colectivização e a 20 de Fevereiro anunciou-se
que 50% dos camponeses se tinham já integrado em granjas colectivas. Tudo isto,
pretendia-se, era uma decisão espontânea da população camponesa. À custa deste
processo, morreram centenas de milhares de pessoas. Contudo, apesar disso,
nunca se deixou de invocar o princípio leninista do “trabalho voluntário”. E
para gerar essa ilusão de voluntariedade, fazia falta instituir toda uma
“cultura proletária”, um “culto do trabalho”, uma mistificação da classe
operária e uma entronização dos “valores proletários”. O resultado foi uma nova
religiosidade, muito mais abjecta do que o cristianismo e o islão, vertebrada
pelo culto à personalidade de Estaline.
O “culto ao
trabalho” foi levado ainda mais longe na China maoista, primeiro com o “grande
salto em frente” e, depois, no âmbito da “revolução cultural”. Frente a tudo
isto, não restam dúvidas de que a militarização trotskista do processo laboral
teria resultado menos indigna: é que, mesmo desconhecendo-se qual teria sido o
seu custo humano, para implantá-la não fazia falta a mentira. Para instaurar
uma “cultura proletária”, pelo seu lado, impunha-se infantilizar a toda a
população, generalizar uma execrável menoridade vigiada por polícias e
delatores. No exército obedece-se a ordens. Contudo, para vestir a necessidade
com as roupagens da virtude e revestir a submissão com o halo da voluntariedade
(e até mesmo da espontaneidade) fazia falta toda uma encenação cultural e
religiosa.
Não é agora a
altura de discutir quanto houve de necessário ou de inevitável em todo este
processo pelo qual o “socialismo real” se viu obrigado a industrializar-se a
todo o transe, em muito menos tempo e com muito menos recursos coloniais do que
aqueles de que gozou o capitalismo. Uma coisa é que isso fosse imprescindível e
outra completamente diferente que fosse desejável por si mesmo; ora, o “culto
ao trabalho”, o obreirismo, a cultura proletária, não argumentavam pela
primeira, senão que exaltavam a segunda.
Para além disso,
por essa altura, ainda se acreditava que a economia socialista era muito mais
produtiva do que a capitalista. O capitalismo, com efeito, era considerado uma
camisa de forças para o desenvolvimento das forças produtivas e, por isso, um
lastro para o progresso e o crescimento económico. A realidade era muito
diferente, contudo. O capitalismo é um sistema em que o conjunto da população
está submetido à chantagem de trabalhar (seja no que for, como for, ao ritmo
que for) ou morrer de fome. Se trata, ademais, de um sistema produtivo que
necessita acelerar-se todos os dias, em uma ininterrupta acumulação ampliada. O
capitalismo – como disseram Wallerstein e Galbraith – é como um rato em uma
roda: corre mais depressa a fim de correr mais depressa. O socialismo, pelo
contrário, pode permitir-se diminuir a marcha. Pode permitir-se, inclusive,
parar ou decrescer sem que emperre suas estruturas produtivas. Ademais, sob o
socialismo a população não está submetida à chantagem da fome ou do trabalho
excessivo. Em consequência, para ganhar um ritmo de trabalho equivalente ao do
capitalismo faria falta um voluntarismo insólito e, tal como tem sido
historicamente mais habitual, muitíssima polícia.
Sem dúvida que –
como dissemos – a busca imperiosa da produtividade é sempre exigida ao
capitalismo pela necessidade de combater e competir com o capitalismo exterior.
Mas reconhecer isto não é, no fundo, mais que dar razão a Trotsky e aceitar que
o socialismo jamais deixou de estar em guerra e que, portanto, jamais se pode
permitir diminuir a marcha. Foi a guerra e não a essência do socialismo que
impôs a produtividade. Nestas condições, era muito difícil assumir o encargo de
dizer que o próprio Marx havia sido tudo menos obreiristas e que, ao falar de
comunismo, havia posto muito mais o acento no ócio que na produtividade:
“O reino da liberdade somente começa ali onde cessa o
trabalho determinado pela necessidade e a adequação a finalidades exteriores.
Para além do reino da necessidade começa o desenvolvimento das forças humanas,
considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que,
portanto, somente pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua
base. A redução da jornada de trabalho é a condição básica” (6).
2. O comunismo como direito à preguiça
Qualquer que
seja o grau de inevitabilidade do culto ao trabalho na história passada do
socialismo, é óbvio que hoje se impõe insistir em uma direção inteiramente
oposta. O capitalismo tem levado o planeta a uma situação insustentável, na
qual seguir crescendo indefinidamente equivale a um suicídio seguro a não muito
longo prazo. A Terra tem ficado pequena para as necessidades de reprodução
ampliada do capital. O esgotamento dos recursos e a mudança climática são realidades
inquestionáveis. Com o tempo, o custo humano que requer semelhante ritmo
produtivo é assustador. Inclusive no Primeiro Mundo se fala já de implantar a
jornada de 65 horas semanais. Mas, ademais, basta somar dois e dois para
compreender que a condição sine qua non desta produtividade suicida
exige que o Terceiro Mundo permaneça em uma situação humanamente insustentável.
20% da humanidade consome agora 86% da produção mundial. Pretender que os 80%
restantes estejam destinados a alcançar níveis de consumo semelhantes é
incompatível com a sobrevivência do planeta; mas pretender que não devem
alcançá-lo jamais é imoral e, provavelmente, inclusive, racista.
Pois bem, esta
mudança de mentalidade não deveria colher de imprevisto a tradição marxista.
Precisamente Paul Lafargue, o genro de Marx (7) com quem começamos essas
linhas, definiu em 1880 o comunismo como o “direito à preguiça” da humanidade,
em uma obra clarividente, que partia do comentário de um texto de Aristóteles: “se
cada um dos instrumentos pudesse realizar por si mesmo seu trabalho, quando
recebesse ordens para isso ou ao prevê-las; e como contam das estátuas de
Dédalo ou dos trípodes de Hefesto, dos quais diz o poeta que ‘entravam por si
sós na assembléia dos deuses’, de tal modo que os teares tecessem por si sós e
os plectros tocassem a cítara, para nada necessitariam os mestres de obra de
serventes, nem os amos de escravos”.
“O sonho de
Aristóteles – comenta Lafargue – é nossa realidade. Nossas máquinas de hálito
de fogo, de infatigáveis membros de aço e de fecundidade maravilhosa e
indistinguível, cumprem docilmente e por si mesmas seu trabalho sagrado, e
apesar disso, o espírito dos grandes filósofos do capitalismo permanece
dominado pelo preconceito do sistema salarial, a pior das escravidões. Ainda
não conseguiu compreender que a máquina é a redentora da Humanidade, a deusa
que resgatará o homem das sordidae artes e do trabalho assalariado, a
deusa que lhe dará comodidades e liberdade”.
Para Lafargue o
socialismo e o comunismo deveriam assegurar, antes de tudo, o “direito à
preguiça”, que é, por sua vez, a chave pela qual o homem tem conquistado e pode
conquistar a possibilidade do ócio, no qual germinam todas suas dignidades
racionais: a ciência, a arte, o direito, a política. O capitalismo nos trouxe
uma sociedade em que se tem feito realidade, pela primeira vez na história, o
milagre de Aristóteles; mas, entretanto, o imenso potencial de ócio liberado
não desprendeu a humanidade em absoluto das cargas de trabalho e tampouco lhe
tem outorgado nenhum direito à preguiça, nenhum descanso. O fato é antes que
nunca se trabalhou tanto e a um ritmo tão suicida como quando os teares se
puseram a tecer sozinhos. Trabalhamos, na realidade, em uma economia muito
primitiva, na qual o esforço por sobreviver suprime a possibilidade de viver.
Em efeito, uma sociedade que gasta todas as suas energias em reproduzir-se
ampliadamente até o infinito é uma sociedade tão primitiva (desde um ponto de
vista antropológico) como uma sociedade que gasta todas as energias na pura
subsistência. A revolução neolítica permitiu ao ser humano transcender o puro
ciclo da sobrevivência biológica. O capitalismo, paradoxalmente, tem mobilizado
a infinita potência de três revoluções industriais, depredando todos os
recursos do planeta, para devolver o ser humano para a pré-história (8).
O capital
acumula capital para seguir acumulando mais capital. A humanidade trabalha mais
para trabalhar mais ainda. Nem sequer a constatação de um inevitável suicídio
ecológico serve para deter essa rota em direção ao abismo. Não nos podemos
cansar de repetir que ninguém teve mais razão que Paul Lafargue, há mais de um
século. A superioridade do socialismo não consistia em sua mais alta
produtividade, mas sim, ao contrário, em sua capacidade de deter-se, de
tornar-se mais lento, de frear. Não necessitamos correr mais, necessitamos
parar. O socialismo devia de haver instituído uma cultura da preguiça, não uma
cultura operária. Se não podia fazê-lo em seu momento, agora temos a ocasião de
proclamá-lo aos quatro ventos: a humanidade tem direito à preguiça.
Tal como exigia
Lafargue, a jornada de trabalho deveria poder guardar algum tipo de relação
inversa com o aumento da produtividade do trabalho. E assim seria, em efeito,
em uma economia estatizada. No socialismo sempre é possível discutir (no
parlamento, por exemplo) se a aparição de novas tecnologias deveria traduzir-se
de imediato em uma redução geral da jornada de trabalho (de modo que a
sociedade pudesse adquirir a mesma riqueza em menos tempo, destinando ao ócio
ou à preguiça o restante) ou se convinha, pelo contrário, conservar a jornada
de trabalho para aumentar o volume de riqueza. O motivo pelo qual as sociedades
socialistas “reais” – e Cuba é aqui um caso inclassificável, como vamos ver -
jamais puderam permitir-se a esse luxo não parece que seja outro, diga o que se
diga, que o fato de que jamais puderam decidir politicamente outra coisa que
não fosse empregar-se em um “comunismo de guerra” em que sempre era necessário
trabalhar mais para seguir trabalhando mais, já que isso era o que fazia o
inimigo. Só que o inimigo o fazia por uma necessidade de seu sistema econômico
e eles pela decisão política de não sucumbir frente à sua agressão. Agora,
fossem quais fossem os problemas das economias socialistas “reais”, o que
seguramente não se propunham era a necessidade de seguir produzindo mais, em
piores condições de trabalho, em função de que haviam já produzido demais. E,
entretanto, esse é o pão nosso de cada dia sob as condições capitalistas de
produção: trabalhar sempre mais é o imperativo de toda possibilidade de
trabalhar e, se existe desemprego, é porque não se trabalhou bastante (o que
parece patentemente absurdo, mas ao mesmo tempo bem evidente para qualquer
empresário que vê sua empresa a ponto de quebrar). As empresas têm que produzir
sempre mais, por muito que já tenham produzido (e isso inclusive em plena crise
de superprodução), se não querem sucumbir às crises econômicas e deixar de
produzir completamente. Os assalariados, enquanto isso, têm que trabalhar
sempre mais, se não querem deixar de trabalhar por completo e engrossar as
fileiras de desempregados. Esta engrenagem não pode parar nunca. As maçãs, a
manteiga, os cereais podem chegar a ser suficientes e os mísseis para destruir
o mundo podem chegar a sobrar. Mas sob condições capitalistas de produção nem
as maçãs são maçãs, nem os mísseis são mísseis, se não são antes, de forma
muito mais essencial, uma ocasião para o benefício empresarial, quer dizer,
isso que nós marxistas chamamos mais-valia. Pode haver maçãs ou mísseis de
sobra, mas o sobre-valor será sempre escasso. Se amanhã querem produzir algo,
maçãs ou mísseis ou o que seja, é preciso que hoje se tenha produzido mais
sobre-valor que ontem. Isso também traz seus problemas: se é produzido mais
sobre-valor do que pode absorver o mercado, a riqueza não pode ser transformada
em dinheiro e, então, não é possível seguir pondo em marcha o processo. Mas o
absurdo chega até o extremo de que o único remédio à super-produção de
sobre-valor é produzir sempre mais ainda, com a esperança de assim arruinar as
empresas concorrentes e lograr impor-se no mercado. Daí que, em uma crise
econômica, politicamente não se possa fazer nada, nem, de fato, “convenha”
fazer nada - e, com efeito, assim proclamam os economistas Hayekianos - pois
não se pode fazer nada em uma situação em que todo o remédio coincide inteiramente
com a doença.
Todavia, há
certamente alguma coisa que se pode fazer: mudar o jogo. Mas para isso é
preciso mudar o tabuleiro (ou como dizia a letra da Internacional, “mudar de
base”).
3. Cuba e a herança de Lafargue
Para instituir
um “direito à preguiça” é necessário, desde logo, que o direito mesmo tenha
alguma eficácia institucional sobre a sociedade. Isto é uma coisa óbvia, ao
menos dita em abstrato. Entretanto, a coisa está muito longe de resultar óbvia
desde o momento em que tentamos apresentar exemplos.
O pressuposto
mais elementar dos países que atualmente se chamam a si mesmos de “Estados de
direitos” ou “democracias constitucionais” é que as questões importantes que
afetam a vida social se decidem politicamente, a partir da argumentação e
contra-argumentação parlamentar. Essas decisões se plasmam em “leis”. “Estado
de Direito” não significa outra coisa que o fato de que a sociedade obedece ao
que as leis dizem, em condições, claro, em que as leis remetam ao ordenamento
constitucional e o ordenamento constitucional remete a sua vez a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
A realidade,
contudo, está muito longe de ser assim. Essa idéia pressupõe, antes de tudo,
que as questões importantes se decidam politicamente. Mas a pura verdade é que
a instância política jamais teve tão pouca relevância como na atualidade. As
opções políticas pelas quais pode optar a cidadania, na Europa ou nos EUA, não
se diferenciam em grande coisa (democratas ou republicanos, ou, por exemplo, na
Espanha, PSOE ou PP), mas os respectivos ministros de economia, esses, são
absolutamente indistinguíveis. O que se decide na arena da economia pesa
infinitamente mais que todos os debates políticos no Parlamento. Não vivemos em
sistemas parlamentares, mas sim em ditaduras econômicas com fachada
parlamentar.
Pense-se, por
exemplo, no que significa que o programa da ATTAC, tenha sido considerado
utópico e esquerdista por todas as autoridades políticas européias. Era uma
utopia a idéia de taxar em 0,01% as transações financeiras não produtivas? A
instância política não tem nem sequer o poder de aportar um centésimo de
decisão na arena da economia? Agora defrontamo-nos com o que já sabíamos: que
íamos a caminho do abismo. Entretanto, nem ainda assim pode a instância
política fazer outra coisa que render-se à autoridade surrealista das forças
econômicas. No mesmo dia em que se destinavam 700.000 milhões de dólares para
salvar os bancos, a FAO havia solicitado 30.000 milhões para salvar da fome
1.000 milhões de pessoas. Salvar os bancos resultou realista. Salvar as
pessoas, utópico, ainda que fosse muito mais barato.
O sistema
capitalista tem feito realidade as piadas mais surrealistas e, em troca, tem
convertido em utópico o mais puro senso comum. Julgue por seus resultados:
segundo um cálculo elementar, para que uma das 2.500 milhões de pessoas que
subsistem com 2 dólares diários, chegar a ganhar, com o suor de seu rosto, uma
fortuna como a de Bill Gates, teria que estar trabalhando (economizando tudo o
que ganhou) 68 milhões de anos. Por um anúncio de tênis da Nike, Michael Jordan
cobrou mais dinheiro do que foi empregado em todo o complexo industrial do
sudeste asiático que os fabricava. Isso é a realidade. Taxar com um imposto
mínimo o capital financeiro é uma utopia política.
Mas, como
dizíamos atrás, o surrealismo da crua realidade tem chegado ainda muito mais
além: a sobrevivência mesma do planeta se converteu em uma utopia. O
capitalismo não pode manter a taxa de lucro sem crescimento. E quando mais se
esgotam os recursos energéticos, o crescimento resulta mais e mais caro, o que
afeta por sua vez, a taxa de lucro. Mas o capitalismo só pode fugir para
adiante, acelerando ainda mais o ritmo de crescimento, em um processo que seria
infinito se não fosse que, definitivamente, o mundo não o é.
Se os sistemas
políticos do primeiro mundo fossem o que dizem ser, todos os parlamentos
estariam discutindo agora um gráfico elaborado por Mathis Wackernagel,
pesquisador do Global Footprint Network (Califórnia) (9). Mas não parece que o assunto
tenha chamado demasiado a atenção. E, entretanto, o gráfico resulta demolidor
para as mais firmes certezas da classe política ocidental e, portanto, para os
critérios mais evidentes de seus votantes. Sobretudo, em um mundo político em
que a esquerda e a direita enchem ambas a boca com os objetivos do
“desenvolvimento sustentável”.
A coisa é bem
simples. O eixo vertical representa o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH),
elaborado pelas Nações Unidas para medir as condições de vida dos cidadãos
tomando como indicadores a esperança de vida ao nascer, o nível educativo e o
PIB per capita. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) considera o IDH “alto” quando é igual ou superior a 0’8 estabelecendo
que, em caso contrário, os países não estão “suficientemente desenvolvidos”. No
eixo horizontal se mede a quantidade de planetas Terra que seria preciso
utilizar em caso de que se generalize a todo o mundo o nível de consumo de um
dado país. Wackernagel e sua equipe fizeram os cálculos para 93 países entre
1975 e 2003. Os resultados são estarrecedores e surpreendentes. Se, por
exemplo, se chegar a generalizar o estilo de vida de Burundi, nos sobraria
ainda mais da metade do planeta. Mas Burundi está muito abaixo do nível
satisfatório de desenvolvimento (0’3 de IDH). Ao contrário, o Reino Unido, por
exemplo, tem um excelente IDH. O problema é que, para consegui-lo, necessita
consumir tantos recursos que, se seu estilo de vida se generalizasse, nos
fariam falta três planetas Terra. EUA tem também boa nota em desenvolvimento
humano; mas sua “destruição ecológica” é tal que faltariam mais cinco planetas
para se poder generalizar seu estilo de vida.
Repassando o
resto dos 93 países, se compreende que há motivos para que o trabalho de
Wackernagel se intitule ‘O mundo está falhando no desenvolvimento sustentável’.
Como não há mais que um planeta Terra, é óbvio que só os países que se situem
na área colorida do gráfico (acima de 0 em IDH, sem sobrepassar o número 1 de
planetas disponíveis) têm um desenvolvimento sustentável. Só os países
compreendidos nessa área seriam um modelo político a imitar, ao menos para
aqueles políticos que querem conservar o mundo a médio prazo ou que não estejam
dispostos a defender seu direito (quiçá racial, divino ou histórico?) a viver
indefinidamente muito acima do resto do mundo.
Pois bem, sucede
que a área em questão está praticamente vazia. Há um só país no mundo que - por
enquanto ao menos - tem um desenvolvimento aceitável e sustentável: Cuba.
Tudo isto dá
certamento muito o que pensar. Para começar, porque é fácil concluir que a
maior parte dos balseiros cubanos fugiram e fogem do país buscando esse outro
nível de consumo que não pode ser generalizado sem destruir o planeta, quer
dizer, reivindicando seu direito a ser tão globalmente irresponsáveis,
criminosos e suicidas como o são os consumidores estadunidenses ou europeus. De
acordo: teríamos muita pouca vergonha se condenássemos desde logo a pretensão
dos demais em imitar o modo ocidental como devoramos impunemente o planeta. Mas
se reconhecerá que a imagem mediática que se dá do assunto difere de forma
radical: do que realmente fogem os balseiros cubanos é do consumo responsável
em busca do paraíso do consumo suicida e, por interesses estratégicos de acosso
a Cuba, os recebem como heróis da liberdade em vez de fechar-lhes as portas
como se faz com quem foge da miséria, por exemplo, de Burundi (a quem se trata
como uma praga da qual nos devemos proteger).
E a um nível
mais geral, a coisa é ainda mais interessante. É muito significativo que o
único país sustentável do mundo seja um país socialista. É um lugar comum entre
os economistas que o socialismo resultou uma ruína ineficaz desde o ponto de
vista econômico. Surpreende que, em um mundo como este, a falta de
competitividade possa ainda considerar-se uma acusação de peso. Em termo de
desenvolvimento sustentável, a economia socialista cubana parece ser
maximamente competitiva. Em termos de desenvolvimento suicida, não cabe
qualquer dúvida, o capitalismo o é muito mais.
Frente a essa
dinâmica suicida, devemos exigir o direito a parar. Não podemos permitir que as
autoridades econômicas mundiais sigam convencendo a humanidade de que “crescer”
abaixo de 2 ou 3% é catastrófico e propondo como solução aos países pobres que
imitem os ricos. No FMI, o BM, a OMC e o G8 sabem perfeitamente que é
materialmente impossível um crescimento universal. O planeta não dá para tanto.
Quando propoẽm esse modelo sabem que, na realidade, estão defendendo algo muito
diferente: que nos encerremos em fortalezas ocidentais, protegidos por muros
cada vez mais altos, onde poderemos literalmente devorar o planeta sem que
ninguém nos moleste nem nos tente imitar. É a nossa solução final, um novo
Auschwitz invertido em que, no lugar de encerrar as vítimas, nos encerramos a
nós própios a salvo daquilo que é, sem dúvida - assim os ouvi dizer em Cuba a
Osvaldo Martinez (10) – a “arma de destruição
massiva mais potente da história: o sistema econômico internacional”.
______________
NOTAS:
NOTAS:
(1) A tradução e algumas referências e dados
foram tomadas do “Estudo preliminar” – um texto excelente, sem dúvida – que
Manuel Perez Ledesma faz anteceder à edição espanhola de ‘El derecho a la
pereza’ de Paul Lafargue (Editorial Fundamentos, Madrid, 1991).
(2) Citado em Charles Bettelheim, ‘Las luchas
de clases en la URSS. Primer Período (1917-1923), Siglo XXI Editores, p. 353.
(3) NEP: a Nova Política Económica (1921-1929)
caracterizou-se por uma certa “liberdade de comércio” e por deixar aos
camponeses uma margem de iniciativa maior, em comparação com a situação durante
o “comunismo de guerra” (1918-1920).
(4) Martínez Marzoa, F.: De la revolución,
Alberto Corazón Editor, Madrid, 1976, p. 143.
(5) Ibidem, p. 137.
(6) Marx, K.: El Capital, Libro III,
Capítulo XLVIII, Siglo XXI, vol. 8, pág. 1044.
(7) Paul Lafargue casou-se finalmente com Laura
Marx a 2 de Abril de 1868. A sua actividade política no seio da AIT foi
incansável, tanto em França como em Espanha. Finalmente, Paul e Laura
suicidaram-se juntos a 26 de Novembro de 1911, depois de passar a tarde num
cinema de Paris e de terem partilhado entre si uma bandeja de pastéis. Lafargue
deixou a seguinte nota: “São de corpo e de espírito, dou-me a morte antes que a
implacável velhice - que me privou sucessivamente dos prazeres e gozos da
existência e me despojou das minhas forças físicas e intelectuais – paralise a
minha energia e acabe com a minha vontade, convertendo-me em um encargo para
mim mesmo e para os demais. Desde há anos, prometi a mim mesmo não ultrapassar
os setenta anos; fixei a época do ano para a minha partida desta vida e
preparei o modo de executar esta minha decisão: uma injecção hipodérmica de
ácido cianídrico. Morro com a suprema alegria de ter a certeza de que muito
prontamente triunfará a causa a que me entreguei desde há quarenta e cinco
anos” (citado por Manuel Pérez Ledesma, em ob. cit., pág. 75).
(8) Esta ideia tem sido amplamente desenvolvida
nas obras de Santiago Alba Rico, Las reglas del caos. Apuntes para una
antropología del mercado, Anagrama, 1998 e La ciudad intangible.
Ensayo sobre el fin del neolítico, Hiru, 2001. Também na sua recente
publicação Capitalismo y Nihilismo, Akal, 2008.
(9) Cf. Wackernagel, M.: World failing
on sustainable development .
(10) Cf. Martínez, O.: La compleja muerte
del neoliberalismo, Editorial Ciencias Sociales, La Habana, 2007.
[1]
Filósofo marxista espanhol, professor na Universidade Complutense de Madrid. É conferencista,
articulista, ensaísta e escritor. É autor de Sem vigilância e sem castigo: uma discussão com Michel Foucault
(Libertarias-Prodhufi, Madrid, 1992); O
materialismo (Sínteses, Madrid, 1998) e Geometria
e tragédia: o uso público da palavra na sociedade moderna (Hiru Argitaletxea,
Hondarribia, 2002).