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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Comunismo e Ócio




Por Carlos Liria[1]

Em defesa de Cuba e à memória de Paul Lafargue

O trabalho ocupa todo o tempo e nada resta dele
para a República e para os amigos.
Xenofonte


A 13 de Agosto de 1866, Karl Marx escreveu a seguinte carta ao noivo de sua filha Laura, um cubano chamado Paul Lafargue:

“Você permitir-me-á fazer-lhe as seguintes observações:

1º Se quer continuar as suas relações com minha filha terá que reconsiderar o seu modo de «fazer a corte». Sabem bem que não há compromisso definitivo, que tudo é provisório; mas mesmo que ela fosse sua prometida em devida forma, não deveria esquecer-se que se trata de um assunto a longo prazo. Por isso, a intimidade excessiva está completamente deslocada, tendo-se em conta que os noivos terão de habitar a mesma cidade por um período necessariamente prolongado de purgatório e rudes provas (...). A meu juízo, o amor verdadeiro manifesta-se na reserva, na modéstia e, inclusivamente, na timidez do amante perante o seu ídolo, não na liberdade da paixão e nas manifestações de uma familiaridade precoce. Se você defende o seu temperamento crioulo, é meu dever interpor a minha razão entre esse temperamento e a minha filha (...).

2.º Antes de estabelecer definitivamente suas relações com Laura necessito de sérias explicações sobre a sua situação económica.

A minha filha supõe que estou ao corrente dos seus assuntos. Está enganada. Não coloquei ainda este assunto na mesa porque, a meu ver, essa iniciativa deveria ter sido tomada por si. Você sabe bem que sacrifiquei toda a minha fortuna nas lutas revolucionárias. Não me arrependo nada disso. Se tivesse que recomeçar a minha vida faria o mesmo (...). Porém, em tudo o que esteja nas minhas mãos, quero livrar a minha filha dos escolhos com que se defrontou a sua mãe” (1).

Além do seu “temperamento crioulo”, Marx reprova também ao seu futuro genro uma certa tendência para a preguiça: “a observação demonstrou-me que você não é trabalhador por natureza, apesar de toda a sua boa vontade e dos seus acessos de actividade febril”.

O autor do ‘Manifesto Comunista’ não podia por então suspeitar a extraordinária relevância que iria ter para o destino do socialismo o assunto que acabava de mencionar: a preguiça.


1. Socialismo e cultura proletária.

Sem dúvida, Marx também não podia suspeitar do naufrágio antropológico e da insólita degradação moral que trariam no futuro à tradição comunista os intentos estalinistas, maoistas e coreanos de instaurar uma “cultura proletária”, um “culto do trabalho” sob o imperativo da industrialização a passo forçado. É bem certo que a industrialização (concebida como um “grande salto em frente” para o qual não haveria que poupar nos custos humanos) era exigida pela correlação de forças internacional, na qual o “socialismo real” se via obrigado a competir com o capitalismo ou resignar-se a ser aniquilado. Sobre isto estavam todos de acordo, ainda que se discutissem os ritmos e os meios. Em 1920, no IX Congresso do Partido, Trotsky mostrou-se inclusivamente um adepto resoluto da militarização do trabalho e dos sindicatos.

“Há que dizer aos operários qual o lugar que devem ocupar, deslocando-os e dirigindo-os como se fossem soldados... A obrigação de trabalhar alcança o seu mais alto grau de intensidade durante a transição do capitalismo ao socialismo... Os ‘desertores’ do trabalho deverão ser incorporados em batalhões disciplinares e enviados a campos de concentração” (...) “A militarização é impensável sem a militarização dos sindicatos como tais, sem o estabelecimento de um regime em que cada trabalhador se considere um soldado do trabalho, que não pode dispor livremente de si próprio; se recebe uma ordem de transferência, deve executá-la; se não a executa será um desertor e castigado em consequência. E quem se encarregaria disso? O sindicato. O sindicato cria o novo regime. É a militarização da classe trabalhadora” (2).

Estes arrazoados de Trotsky fazem estremecer pela sua clareza e pela sua contundência; nem sequer morde a língua ao fazer uma apologia do trabalho forçado e, inclusivamente, da “utilidade” do esclavagismo: “Será realmente verdade que o trabalho obrigatório é sempre improdutivo?... Estamos aqui perante o preconceito liberal mais lamentável e miserável: os rebenhos de escravos também eram produtivos (...), o trabalho obrigatório dos escravos foi no seu tempo um fenómeno progressista” (ibidem, pág. 354).

Como é sabido, o Partido negou-se então a seguir o caminho proposto por Trotsky: a militarização do trabalho não pode justificar-se – concuíu-se então – senão em caso de guerra. Pois bem, à vista da história posterior do século XX, um certo trotskismo poderia talvez perguntar ainda: E quando deixou a URSS de estar em guerra, entre 1920 e 1991? Trotsky, ao menos, era partidário de falar claro, de dizer a verdade: estão assim as coisas, assim devemos proceder. Ou proletarizamos e industrializamos a URSS de forma massiva ou perdemos a (próxima) guerra (que será tanto mais iminente quanto maior fraqueza mostrarmos).

Nesses momentos, Estaline inclinou-se para uma posição mais moderada (tal como Lenine). Contudo, após o parêntesis aberto pela NEP (3), também ele optará pela superindustrialização a todo o transe, ultrapassando inclusive as antigas propostas trotskistas. Com a diferença que Estaline já não se podia permitir dizer a verdade. “Ao terror, Lenine e Trotsky chamaram terror; chamaram repressão à repressão e fome à fome” (4). Estaline, pelo seu lado, proletarizou o campo soviético pretendendo que “existia um movimento ‘espontâneo’ da ‘maioria esmagadora’ dos camponeses pobres em direcção a formas colectivas de exploração agrícola. Da noite para o dia os camponeses tinham-se feito entusiastas da colectivização” (5). Em Novembro de 1929, o Comité Central constatou que existia essa aspiração popular generalizada; a 5 de Janeiro de 1930, ditou o decreto de colectivização e a 20 de Fevereiro anunciou-se que 50% dos camponeses se tinham já integrado em granjas colectivas. Tudo isto, pretendia-se, era uma decisão espontânea da população camponesa. À custa deste processo, morreram centenas de milhares de pessoas. Contudo, apesar disso, nunca se deixou de invocar o princípio leninista do “trabalho voluntário”. E para gerar essa ilusão de voluntariedade, fazia falta instituir toda uma “cultura proletária”, um “culto do trabalho”, uma mistificação da classe operária e uma entronização dos “valores proletários”. O resultado foi uma nova religiosidade, muito mais abjecta do que o cristianismo e o islão, vertebrada pelo culto à personalidade de Estaline.

O “culto ao trabalho” foi levado ainda mais longe na China maoista, primeiro com o “grande salto em frente” e, depois, no âmbito da “revolução cultural”. Frente a tudo isto, não restam dúvidas de que a militarização trotskista do processo laboral teria resultado menos indigna: é que, mesmo desconhecendo-se qual teria sido o seu custo humano, para implantá-la não fazia falta a mentira. Para instaurar uma “cultura proletária”, pelo seu lado, impunha-se infantilizar a toda a população, generalizar uma execrável menoridade vigiada por polícias e delatores. No exército obedece-se a ordens. Contudo, para vestir a necessidade com as roupagens da virtude e revestir a submissão com o halo da voluntariedade (e até mesmo da espontaneidade) fazia falta toda uma encenação cultural e religiosa.

Não é agora a altura de discutir quanto houve de necessário ou de inevitável em todo este processo pelo qual o “socialismo real” se viu obrigado a industrializar-se a todo o transe, em muito menos tempo e com muito menos recursos coloniais do que aqueles de que gozou o capitalismo. Uma coisa é que isso fosse imprescindível e outra completamente diferente que fosse desejável por si mesmo; ora, o “culto ao trabalho”, o obreirismo, a cultura proletária, não argumentavam pela primeira, senão que exaltavam a segunda.

Para além disso, por essa altura, ainda se acreditava que a economia socialista era muito mais produtiva do que a capitalista. O capitalismo, com efeito, era considerado uma camisa de forças para o desenvolvimento das forças produtivas e, por isso, um lastro para o progresso e o crescimento económico. A realidade era muito diferente, contudo. O capitalismo é um sistema em que o conjunto da população está submetido à chantagem de trabalhar (seja no que for, como for, ao ritmo que for) ou morrer de fome. Se trata, ademais, de um sistema produtivo que necessita acelerar-se todos os dias, em uma ininterrupta acumulação ampliada. O capitalismo – como disseram Wallerstein e Galbraith – é como um rato em uma roda: corre mais depressa a fim de correr mais depressa. O socialismo, pelo contrário, pode permitir-se diminuir a marcha. Pode permitir-se, inclusive, parar ou decrescer sem que emperre suas estruturas produtivas. Ademais, sob o socialismo a população não está submetida à chantagem da fome ou do trabalho excessivo. Em consequência, para ganhar um ritmo de trabalho equivalente ao do capitalismo faria falta um voluntarismo insólito e, tal como tem sido historicamente mais habitual, muitíssima polícia.

Sem dúvida que – como dissemos – a busca imperiosa da produtividade é sempre exigida ao capitalismo pela necessidade de combater e competir com o capitalismo exterior. Mas reconhecer isto não é, no fundo, mais que dar razão a Trotsky e aceitar que o socialismo jamais deixou de estar em guerra e que, portanto, jamais se pode permitir diminuir a marcha. Foi a guerra e não a essência do socialismo que impôs a produtividade. Nestas condições, era muito difícil assumir o encargo de dizer que o próprio Marx havia sido tudo menos obreiristas e que, ao falar de comunismo, havia posto muito mais o acento no ócio que na produtividade:

“O reino da liberdade somente começa ali onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e a adequação a finalidades exteriores. Para além do reino da necessidade começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, portanto, somente pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a condição básica” (6).

2. O comunismo como direito à preguiça

Qualquer que seja o grau de inevitabilidade do culto ao trabalho na história passada do socialismo, é óbvio que hoje se impõe insistir em uma direção inteiramente oposta. O capitalismo tem levado o planeta a uma situação insustentável, na qual seguir crescendo indefinidamente equivale a um suicídio seguro a não muito longo prazo. A Terra tem ficado pequena para as necessidades de reprodução ampliada do capital. O esgotamento dos recursos e a mudança climática são realidades inquestionáveis. Com o tempo, o custo humano que requer semelhante ritmo produtivo é assustador. Inclusive no Primeiro Mundo se fala já de implantar a jornada de 65 horas semanais. Mas, ademais, basta somar dois e dois para compreender que a condição sine qua non desta produtividade suicida exige que o Terceiro Mundo permaneça em uma situação humanamente insustentável. 20% da humanidade consome agora 86% da produção mundial. Pretender que os 80% restantes estejam destinados a alcançar níveis de consumo semelhantes é incompatível com a sobrevivência do planeta; mas pretender que não devem alcançá-lo jamais é imoral e, provavelmente, inclusive, racista.

Pois bem, esta mudança de mentalidade não deveria colher de imprevisto a tradição marxista. Precisamente Paul Lafargue, o genro de Marx (7) com quem começamos essas linhas, definiu em 1880 o comunismo como o “direito à preguiça” da humanidade, em uma obra clarividente, que partia do comentário de um texto de Aristóteles: “se cada um dos instrumentos pudesse realizar por si mesmo seu trabalho, quando recebesse ordens para isso ou ao prevê-las; e como contam das estátuas de Dédalo ou dos trípodes de Hefesto, dos quais diz o poeta que ‘entravam por si sós na assembléia dos deuses’, de tal modo que os teares tecessem por si sós e os plectros tocassem a cítara, para nada necessitariam os mestres de obra de serventes, nem os amos de escravos”.

“O sonho de Aristóteles – comenta Lafargue – é nossa realidade. Nossas máquinas de hálito de fogo, de infatigáveis membros de aço e de fecundidade maravilhosa e indistinguível, cumprem docilmente e por si mesmas seu trabalho sagrado, e apesar disso, o espírito dos grandes filósofos do capitalismo permanece dominado pelo preconceito do sistema salarial, a pior das escravidões. Ainda não conseguiu compreender que a máquina é a redentora da Humanidade, a deusa que resgatará o homem das sordidae artes e do trabalho assalariado, a deusa que lhe dará comodidades e liberdade”.

Para Lafargue o socialismo e o comunismo deveriam assegurar, antes de tudo, o “direito à preguiça”, que é, por sua vez, a chave pela qual o homem tem conquistado e pode conquistar a possibilidade do ócio, no qual germinam todas suas dignidades racionais: a ciência, a arte, o direito, a política. O capitalismo nos trouxe uma sociedade em que se tem feito realidade, pela primeira vez na história, o milagre de Aristóteles; mas, entretanto, o imenso potencial de ócio liberado não desprendeu a humanidade em absoluto das cargas de trabalho e tampouco lhe tem outorgado nenhum direito à preguiça, nenhum descanso. O fato é antes que nunca se trabalhou tanto e a um ritmo tão suicida como quando os teares se puseram a tecer sozinhos. Trabalhamos, na realidade, em uma economia muito primitiva, na qual o esforço por sobreviver suprime a possibilidade de viver. Em efeito, uma sociedade que gasta todas as suas energias em reproduzir-se ampliadamente até o infinito é uma sociedade tão primitiva (desde um ponto de vista antropológico) como uma sociedade que gasta todas as energias na pura subsistência. A revolução neolítica permitiu ao ser humano transcender o puro ciclo da sobrevivência biológica. O capitalismo, paradoxalmente, tem mobilizado a infinita potência de três revoluções industriais, depredando todos os recursos do planeta, para devolver o ser humano para a pré-história (8).

O capital acumula capital para seguir acumulando mais capital. A humanidade trabalha mais para trabalhar mais ainda. Nem sequer a constatação de um inevitável suicídio ecológico serve para deter essa rota em direção ao abismo. Não nos podemos cansar de repetir que ninguém teve mais razão que Paul Lafargue, há mais de um século. A superioridade do socialismo não consistia em sua mais alta produtividade, mas sim, ao contrário, em sua capacidade de deter-se, de tornar-se mais lento, de frear. Não necessitamos correr mais, necessitamos parar. O socialismo devia de haver instituído uma cultura da preguiça, não uma cultura operária. Se não podia fazê-lo em seu momento, agora temos a ocasião de proclamá-lo aos quatro ventos: a humanidade tem direito à preguiça.

Tal como exigia Lafargue, a jornada de trabalho deveria poder guardar algum tipo de relação inversa com o aumento da produtividade do trabalho. E assim seria, em efeito, em uma economia estatizada. No socialismo sempre é possível discutir (no parlamento, por exemplo) se a aparição de novas tecnologias deveria traduzir-se de imediato em uma redução geral da jornada de trabalho (de modo que a sociedade pudesse adquirir a mesma riqueza em menos tempo, destinando ao ócio ou à preguiça o restante) ou se convinha, pelo contrário, conservar a jornada de trabalho para aumentar o volume de riqueza. O motivo pelo qual as sociedades socialistas “reais” – e Cuba é aqui um caso inclassificável, como vamos ver - jamais puderam permitir-se a esse luxo não parece que seja outro, diga o que se diga, que o fato de que jamais puderam decidir politicamente outra coisa que não fosse empregar-se em um “comunismo de guerra” em que sempre era necessário trabalhar mais para seguir trabalhando mais, já que isso era o que fazia o inimigo. Só que o inimigo o fazia por uma necessidade de seu sistema econômico e eles pela decisão política de não sucumbir frente à sua agressão. Agora, fossem quais fossem os problemas das economias socialistas “reais”, o que seguramente não se propunham era a necessidade de seguir produzindo mais, em piores condições de trabalho, em função de que haviam já produzido demais. E, entretanto, esse é o pão nosso de cada dia sob as condições capitalistas de produção: trabalhar sempre mais é o imperativo de toda possibilidade de trabalhar e, se existe desemprego, é porque não se trabalhou bastante (o que parece patentemente absurdo, mas ao mesmo tempo bem evidente para qualquer empresário que vê sua empresa a ponto de quebrar). As empresas têm que produzir sempre mais, por muito que já tenham produzido (e isso inclusive em plena crise de superprodução), se não querem sucumbir às crises econômicas e deixar de produzir completamente. Os assalariados, enquanto isso, têm que trabalhar sempre mais, se não querem deixar de trabalhar por completo e engrossar as fileiras de desempregados. Esta engrenagem não pode parar nunca. As maçãs, a manteiga, os cereais podem chegar a ser suficientes e os mísseis para destruir o mundo podem chegar a sobrar. Mas sob condições capitalistas de produção nem as maçãs são maçãs, nem os mísseis são mísseis, se não são antes, de forma muito mais essencial, uma ocasião para o benefício empresarial, quer dizer, isso que nós marxistas chamamos mais-valia. Pode haver maçãs ou mísseis de sobra, mas o sobre-valor será sempre escasso. Se amanhã querem produzir algo, maçãs ou mísseis ou o que seja, é preciso que hoje se tenha produzido mais sobre-valor que ontem. Isso também traz seus problemas: se é produzido mais sobre-valor do que pode absorver o mercado, a riqueza não pode ser transformada em dinheiro e, então, não é possível seguir pondo em marcha o processo. Mas o absurdo chega até o extremo de que o único remédio à super-produção de sobre-valor é produzir sempre mais ainda, com a esperança de assim arruinar as empresas concorrentes e lograr impor-se no mercado. Daí que, em uma crise econômica, politicamente não se possa fazer nada, nem, de fato, “convenha” fazer nada - e, com efeito, assim proclamam os economistas Hayekianos - pois não se pode fazer nada em uma situação em que todo o remédio coincide inteiramente com a doença.

Todavia, há certamente alguma coisa que se pode fazer: mudar o jogo. Mas para isso é preciso mudar o tabuleiro (ou como dizia a letra da Internacional, “mudar de base”).


3. Cuba e a herança de Lafargue

Para instituir um “direito à preguiça” é necessário, desde logo, que o direito mesmo tenha alguma eficácia institucional sobre a sociedade. Isto é uma coisa óbvia, ao menos dita em abstrato. Entretanto, a coisa está muito longe de resultar óbvia desde o momento em que tentamos apresentar exemplos.

O pressuposto mais elementar dos países que atualmente se chamam a si mesmos de “Estados de direitos” ou “democracias constitucionais” é que as questões importantes que afetam a vida social se decidem politicamente, a partir da argumentação e contra-argumentação parlamentar. Essas decisões se plasmam em “leis”. “Estado de Direito” não significa outra coisa que o fato de que a sociedade obedece ao que as leis dizem, em condições, claro, em que as leis remetam ao ordenamento constitucional e o ordenamento constitucional remete a sua vez a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A realidade, contudo, está muito longe de ser assim. Essa idéia pressupõe, antes de tudo, que as questões importantes se decidam politicamente. Mas a pura verdade é que a instância política jamais teve tão pouca relevância como na atualidade. As opções políticas pelas quais pode optar a cidadania, na Europa ou nos EUA, não se diferenciam em grande coisa (democratas ou republicanos, ou, por exemplo, na Espanha, PSOE ou PP), mas os respectivos ministros de economia, esses, são absolutamente indistinguíveis. O que se decide na arena da economia pesa infinitamente mais que todos os debates políticos no Parlamento. Não vivemos em sistemas parlamentares, mas sim em ditaduras econômicas com fachada parlamentar.

Pense-se, por exemplo, no que significa que o programa da ATTAC, tenha sido considerado utópico e esquerdista por todas as autoridades políticas européias. Era uma utopia a idéia de taxar em 0,01% as transações financeiras não produtivas? A instância política não tem nem sequer o poder de aportar um centésimo de decisão na arena da economia? Agora defrontamo-nos com o que já sabíamos: que íamos a caminho do abismo. Entretanto, nem ainda assim pode a instância política fazer outra coisa que render-se à autoridade surrealista das forças econômicas. No mesmo dia em que se destinavam 700.000 milhões de dólares para salvar os bancos, a FAO havia solicitado 30.000 milhões para salvar da fome 1.000 milhões de pessoas. Salvar os bancos resultou realista. Salvar as pessoas, utópico, ainda que fosse muito mais barato.

O sistema capitalista tem feito realidade as piadas mais surrealistas e, em troca, tem convertido em utópico o mais puro senso comum. Julgue por seus resultados: segundo um cálculo elementar, para que uma das 2.500 milhões de pessoas que subsistem com 2 dólares diários, chegar a ganhar, com o suor de seu rosto, uma fortuna como a de Bill Gates, teria que estar trabalhando (economizando tudo o que ganhou) 68 milhões de anos. Por um anúncio de tênis da Nike, Michael Jordan cobrou mais dinheiro do que foi empregado em todo o complexo industrial do sudeste asiático que os fabricava. Isso é a realidade. Taxar com um imposto mínimo o capital financeiro é uma utopia política.

Mas, como dizíamos atrás, o surrealismo da crua realidade tem chegado ainda muito mais além: a sobrevivência mesma do planeta se converteu em uma utopia. O capitalismo não pode manter a taxa de lucro sem crescimento. E quando mais se esgotam os recursos energéticos, o crescimento resulta mais e mais caro, o que afeta por sua vez, a taxa de lucro. Mas o capitalismo só pode fugir para adiante, acelerando ainda mais o ritmo de crescimento, em um processo que seria infinito se não fosse que, definitivamente, o mundo não o é.

Se os sistemas políticos do primeiro mundo fossem o que dizem ser, todos os parlamentos estariam discutindo agora um gráfico elaborado por Mathis Wackernagel, pesquisador do Global Footprint Network (Califórnia) (9). Mas não parece que o assunto tenha chamado demasiado a atenção. E, entretanto, o gráfico resulta demolidor para as mais firmes certezas da classe política ocidental e, portanto, para os critérios mais evidentes de seus votantes. Sobretudo, em um mundo político em que a esquerda e a direita enchem ambas a boca com os objetivos do “desenvolvimento sustentável”.

A coisa é bem simples. O eixo vertical representa o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), elaborado pelas Nações Unidas para medir as condições de vida dos cidadãos tomando como indicadores a esperança de vida ao nascer, o nível educativo e o PIB per capita. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) considera o IDH “alto” quando é igual ou superior a 0’8 estabelecendo que, em caso contrário, os países não estão “suficientemente desenvolvidos”. No eixo horizontal se mede a quantidade de planetas Terra que seria preciso utilizar em caso de que se generalize a todo o mundo o nível de consumo de um dado país. Wackernagel e sua equipe fizeram os cálculos para 93 países entre 1975 e 2003. Os resultados são estarrecedores e surpreendentes. Se, por exemplo, se chegar a generalizar o estilo de vida de Burundi, nos sobraria ainda mais da metade do planeta. Mas Burundi está muito abaixo do nível satisfatório de desenvolvimento (0’3 de IDH). Ao contrário, o Reino Unido, por exemplo, tem um excelente IDH. O problema é que, para consegui-lo, necessita consumir tantos recursos que, se seu estilo de vida se generalizasse, nos fariam falta três planetas Terra. EUA tem também boa nota em desenvolvimento humano; mas sua “destruição ecológica” é tal que faltariam mais cinco planetas para se poder generalizar seu estilo de vida.

Repassando o resto dos 93 países, se compreende que há motivos para que o trabalho de Wackernagel se intitule ‘O mundo está falhando no desenvolvimento sustentável’. Como não há mais que um planeta Terra, é óbvio que só os países que se situem na área colorida do gráfico (acima de 0 em IDH, sem sobrepassar o número 1 de planetas disponíveis) têm um desenvolvimento sustentável. Só os países compreendidos nessa área seriam um modelo político a imitar, ao menos para aqueles políticos que querem conservar o mundo a médio prazo ou que não estejam dispostos a defender seu direito (quiçá racial, divino ou histórico?) a viver indefinidamente muito acima do resto do mundo.

Pois bem, sucede que a área em questão está praticamente vazia. Há um só país no mundo que - por enquanto ao menos - tem um desenvolvimento aceitável e sustentável: Cuba.

Tudo isto dá certamento muito o que pensar. Para começar, porque é fácil concluir que a maior parte dos balseiros cubanos fugiram e fogem do país buscando esse outro nível de consumo que não pode ser generalizado sem destruir o planeta, quer dizer, reivindicando seu direito a ser tão globalmente irresponsáveis, criminosos e suicidas como o são os consumidores estadunidenses ou europeus. De acordo: teríamos muita pouca vergonha se condenássemos desde logo a pretensão dos demais em imitar o modo ocidental como devoramos impunemente o planeta. Mas se reconhecerá que a imagem mediática que se dá do assunto difere de forma radical: do que realmente fogem os balseiros cubanos é do consumo responsável em busca do paraíso do consumo suicida e, por interesses estratégicos de acosso a Cuba, os recebem como heróis da liberdade em vez de fechar-lhes as portas como se faz com quem foge da miséria, por exemplo, de Burundi (a quem se trata como uma praga da qual nos devemos proteger).

E a um nível mais geral, a coisa é ainda mais interessante. É muito significativo que o único país sustentável do mundo seja um país socialista. É um lugar comum entre os economistas que o socialismo resultou uma ruína ineficaz desde o ponto de vista econômico. Surpreende que, em um mundo como este, a falta de competitividade possa ainda considerar-se uma acusação de peso. Em termo de desenvolvimento sustentável, a economia socialista cubana parece ser maximamente competitiva. Em termos de desenvolvimento suicida, não cabe qualquer dúvida, o capitalismo o é muito mais.

Frente a essa dinâmica suicida, devemos exigir o direito a parar. Não podemos permitir que as autoridades econômicas mundiais sigam convencendo a humanidade de que “crescer” abaixo de 2 ou 3% é catastrófico e propondo como solução aos países pobres que imitem os ricos. No FMI, o BM, a OMC e o G8 sabem perfeitamente que é materialmente impossível um crescimento universal. O planeta não dá para tanto. Quando propoẽm esse modelo sabem que, na realidade, estão defendendo algo muito diferente: que nos encerremos em fortalezas ocidentais, protegidos por muros cada vez mais altos, onde poderemos literalmente devorar o planeta sem que ninguém nos moleste nem nos tente imitar. É a nossa solução final, um novo Auschwitz invertido em que, no lugar de encerrar as vítimas, nos encerramos a nós própios a salvo daquilo que é, sem dúvida - assim os ouvi dizer em Cuba a Osvaldo Martinez (10) – a “arma de destruição massiva mais potente da história: o sistema econômico internacional”.


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NOTAS:
(1) A tradução e algumas referências e dados foram tomadas do “Estudo preliminar” – um texto excelente, sem dúvida – que Manuel Perez Ledesma faz anteceder à edição espanhola de ‘El derecho a la pereza’ de Paul Lafargue (Editorial Fundamentos, Madrid, 1991).
(2) Citado em Charles Bettelheim, ‘Las luchas de clases en la URSS. Primer Período (1917-1923), Siglo XXI Editores, p. 353.
(3) NEP: a Nova Política Económica (1921-1929) caracterizou-se por uma certa “liberdade de comércio” e por deixar aos camponeses uma margem de iniciativa maior, em comparação com a situação durante o “comunismo de guerra” (1918-1920).
(4) Martínez Marzoa, F.: De la revolución, Alberto Corazón Editor, Madrid, 1976, p. 143.
(5) Ibidem, p. 137.
(6) Marx, K.: El Capital, Libro III, Capítulo XLVIII, Siglo XXI, vol. 8, pág. 1044.
(7) Paul Lafargue casou-se finalmente com Laura Marx a 2 de Abril de 1868. A sua actividade política no seio da AIT foi incansável, tanto em França como em Espanha. Finalmente, Paul e Laura suicidaram-se juntos a 26 de Novembro de 1911, depois de passar a tarde num cinema de Paris e de terem partilhado entre si uma bandeja de pastéis. Lafargue deixou a seguinte nota: “São de corpo e de espírito, dou-me a morte antes que a implacável velhice - que me privou sucessivamente dos prazeres e gozos da existência e me despojou das minhas forças físicas e intelectuais – paralise a minha energia e acabe com a minha vontade, convertendo-me em um encargo para mim mesmo e para os demais. Desde há anos, prometi a mim mesmo não ultrapassar os setenta anos; fixei a época do ano para a minha partida desta vida e preparei o modo de executar esta minha decisão: uma injecção hipodérmica de ácido cianídrico. Morro com a suprema alegria de ter a certeza de que muito prontamente triunfará a causa a que me entreguei desde há quarenta e cinco anos” (citado por Manuel Pérez Ledesma, em ob. cit., pág. 75).
(8) Esta ideia tem sido amplamente desenvolvida nas obras de Santiago Alba Rico, Las reglas del caos. Apuntes para una antropología del mercado, Anagrama, 1998 e La ciudad intangible. Ensayo sobre el fin del neolítico, Hiru, 2001. Também na sua recente publicação Capitalismo y Nihilismo, Akal, 2008.
(10) Cf. Martínez, O.: La compleja muerte del neoliberalismo, Editorial Ciencias Sociales, La Habana, 2007.




[1] Filósofo marxista espanhol, professor na Universidade Complutense de Madrid. É conferencista, articulista, ensaísta e escritor. É autor de Sem vigilância e sem castigo: uma discussão com Michel Foucault (Libertarias-Prodhufi, Madrid, 1992); O materialismo (Sínteses, Madrid, 1998) e Geometria e tragédia: o uso público da palavra na sociedade moderna (Hiru Argitaletxea, Hondarribia, 2002).