Com colaboração de Tatiana Merlino, de Marabá.
Compromisso para indenizar os ricos. |
Após uma viagem de 40 minutos de carro
desde o centro de Marabá, parte dela feita em estrada de terra, chega-se a uma
rua onde a lama impede a passagem do jipe. A única maneira de atravessar é a
pé. São 20 minutos de caminhada na lama até chegar à casa do camponês Abel
Honorato de Jesus, o Abelinho. O homem franzino é um dos posseiros da região
onde foi implantada a guerrilha do Araguaia (1972-1975) e que foram obrigados a
trabalhar como mateiros do Exército, ajudando na captura dos militantes que se
instalaram por lá. Grande conhecedor da área e de parte dos guerrilheiros –
Abelinho chegou a trabalhar no garimpo com Osvaldo Orlando da Costa, o
Osvaldão, o mais famoso guerrilheiro do Araguaia –, o lavrador trabalhou com o
Exército até 1983.
Recentemente, Abelinho tem colaborado
com o trabalho da equipe do GTT (Grupo de Trabalho Tocantins) fornecendo
informações e sustenta a tese de que o número de camponeses assassinados pelas
forças do Estado durante o período da guerrilha é maior do que se tem notícia.
“Eu conheço muita gente que morreu de taca [surra]”, conta. O ex-mateiro também
afirma ter visto “muitos camponeses apanharem, serem torturados. Lavei sangue
demais desse povo. Enrolavam um saco de estopa num rodo e eu empurrava o sangue
dessa gente”. Além dos camponeses que aderiram à guerrilha e os que ajudaram os
militantes com comida e suprimentos, também muitos mateiros foram assassinados,
mesmo tendo colaborado com o Exército, recorda o lavrador.
Guerrilheiros mortos pelo exército |
Segundo o pesquisador Paulo Fonteles
Filho, integrante da ouvidoria do GTT, embora se estime que o número de
desaparecidos do Araguaia, entre guerrilheiros e camponeses, gire em torno de
100 pessoas, “eu tenho convicção que naquele processo foram mortas 500 pessoas
ou mais”. Segundo ele, há informações novas que estão sendo reveladas por
ex-soldados do Exército, que hoje subsidiam o GTT. “Há camponeses que estavam
na mata como castanheiros e foram fuzilados por uma tropa, por exemplo. Nosso
papel também é falar desses anônimos”, esclarece. De acordo com ele, a
violência do Estado contra os moradores da região também foi “brutal”. “Eles
foram maltratados, sofreram, foram torturados, perderam suas roças”.
Mapa do conflito |
Um dos ex-soldados que está colaborando
com o GTT é Manoel Messias Guido Ribeiro, que combateu una base Xambioá. Ele
conta que o tio de sua esposa foi morto de “taca” na serra das Andorinhas
apenas por ter dado comida aos guerrilheiros. “Vi muitos camponeses presos”.
Guido também presenciou a tortura de camponeses na sede local do Departamento
Nacional de Estradas e Rodagens (DNER), a chamada “casa azul”. “Ouvi gritos
absurdos, arrastávamos corpos, vivos, mas desmaiados. A gente jogava água em
cima deles e levava de volta”.
OPERAÇÃO LIMPEZA
Ed. 1309, n 41, ano 26, 13/10/93 |
O ex-soldado maranhense afirma ter
participado da “Operação Limpeza” de 1975, quando as forças de repressão ainda
“caçavam” remanescentes do “terrorismo”, como possíveis colaboradores dos
guerrilheiros. “Da segunda limpeza, feita para retirar os ossos, eu não
participei, mas a gente ouvia falar: “estão arrancando ossos de gente por aí”.
Guido afirma que a região esteve vigiada até 1980. “Ainda está hoje. Não pense
que não está”, garante. Guido também diz se sentir inseguro “com o que estamos
falando, pois estamos rodeados deles por aí”, acredita.
Em depoimento em vídeo colhido pelo GTT,
Valdim Pereira de Souza, ex-funcionário, ex-militar e motorista do major Curió
[oficial da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, um dos líderes da repressão à
guerrilha do Araguaia], entre 1976 e 1983, relata que em 1976 participou da
retirada dos corpos e ossadas dos guerrilheiros e camponeses mortos em muitas
localidades da região. Sua missão era levar para a sede do DNER vários sacos
amarrados com um cordão. “Os sacos pesavam cerca de 100 quilos e, dentro, soube
depois, por meio de um servidor do próprio DNER conhecido por “Pé na Cova”,
havia ossos humanos. O cheiro era insuportável. Os homens do Exército que
comandavam a operação eram o doutor Luchini (Sebastião Curió) e os sargentos
Santa Cruz e Ribamar”, disse. “Não tínhamos o direito de saber o que fazíamos,
apenas cumprir a nossa obrigação e as determinações superiores”, completa.
AMEAÇAS
Vítimas do Estado Brasileiro |
Como resultado das denúncias, Valdim,
assim como outros camponeses e moradores da região, foi ameaçado. Em dezembro
do ano passado, ele recebeu ligações em seu celular, que diziam: “pare de falar
besteira”, “fica calado, não te mete em encrenca”, “tenha cuidado com o que
anda falando por aí”. Neste ano, as ameaças aumentaram. Em 2 março, uma
caminhonete com película de insulfilm nos vidros rondou sua casa em Macapá, no
Amapá. Valdim acredita que é Curió quem está por trás das ameaças: “O Curió é
corajoso e me disse certa vez que quem fala muito morre, e dizia que ‘inimigo
bom é inimigo morto’”.
Um carro com insulfilm também rondou a
casa do representante da Associação dos Camponeses do Araguaia, Sezostrys Alves
da Costa, no mesmo dia 2 de março, em São Domingos do Araguaia. Os quatro
homens que estavam no veículo procuraram por ele e Paulo Fonteles.
Em 27 de março, Mercês Castro, irmã de
Antônio Teodoro Castro, desaparecido político no Araguaia e membro do GTT,
sofreu um acidente em Marabá. “As porcas de um pneu do carro foi afrouxado e a
roda foi cuspida do carro. Denunciamos isso para a Polícia Federal, enviamos
isso para a juíza Solange Salgado”, relata Paulo Fonteles. “Mas não vamos abrir
mão do nosso trabalho. Pode vir ameaça, mas não vamos arredar pé daqui”,
conclui. Segundo Paulo Fonteles Filho, o primeiro registro de ameaça ocorreu em
junho do ano passado, “contra o camponês Beca, morador de São Domingos do
Araguaia, que foi torturado pela repressão política e é colaborador do GTT”.
A
HISTÓRIA DE HELENIRA
Esta é uma das histórias contadas no
livro da Secretaria Especial de Direitos Humanos: “LUTA, SUBSTANTIVO FEMININO” sobre
a militante estudantil e depois guerrilheira no Araguaia Helenira Resende, não
creio que seja mera coincidência com perfil de Maria Paixão.
Nascida na pequena cidade de Cerqueira
César, próxima a Avaré, no interior paulista, Helenira mudou-se aos quatro anos
para Assis, onde cresceu. Concluiu ali o curso clássico no Instituto de
Educação Prof. Clibas Pinto Ferraz, onde foi uma das fundadoras do grêmio de
representação dos alunos. Mudou-se então para São Paulo e cursou Letras
na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), localizada,
naquele tempo, na Rua Maria Antônia. Na época, foi eleita presidente do Centro
Acadêmico.
Tornou-se importante liderança no
movimento estudantil, sendo conhecida também pelo apelido de “Preta”. A
primeira prisão de Helenira aconteceu em junho de 1967, quando escrevia nos
muros da Universidade Mackenzie, na própria Rua Maria Antônia, a frase: “Abaixo
as leis da ditadura”. Voltou a ser presa em maio de 1968, quando convocava
colegas para uma passeata na capital paulista. Naquele mesmo ano de
fortes mobilizações estudantis, foi presa pela terceira vez em Ibiúna
(SP), agora como delegada no 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE),
entidade da qual era vice-presidente.
Na ocasião, quando o ônibus que
transportava estudantes presos passou pela avenida Tiradentes, Helenira
conseguiu entregar, a um transeunte, um bilhete para ser levado à sua
residência, no Cambuci, avisando sua família sobre a prisão. Apontada como
liderança do movimento estudantil, foi transferida do Presídio Tiradentes para
o DOPS. Depois, a estudante seria levada para o presídio feminino do Carandiru,
onde ficou detida por dois meses. A família conseguiu libertá-la mediante
habeas corpus na véspera da edição do AI5. A partir de então, Helenira, que já
era militante do PCdoB, passou a viver e a atuar na clandestinidade, morando em
vários pontos da cidade e do país antes de se mudar para o Araguaia.
Conhecida como Fátima naquela região,
integrou o Destacamento A da guerrilha, unidade que recebeu seu nome depois que
ela foi morta, em 28 ou 29 de setembro de 1972. Teria matado um militar e
atingido outro, antes de ser ferida e morta. Metralhada nas pernas e torturada
até a morte, segundo depoimento da ex-presa política Elza de Lima Monnerat na
Justiça Militar, foi enterrada na localidade de Oito Barracas.
O Jornal a Voz da Terra, de Assis
(naqueles tempos existiam jornalistas sérios), publicou na edição de 8 de
fevereiro de 1979, extensa reportagem sob o título “A comovente história de Helenira”.
A matéria descreve sua juventude na cidade, filha de um médico negro, conhecido
e respeitado por suas tendências humanistas. Informa também que a jovem se
destacou como atleta, com desempenho especial na equipe de basquete da cidade,
uma das melhores na região sorocabana. De acordo com esse jornal, o lugar onde
Helenira tombou ferida se tornou uma poça de sangue, segundo soldados do Pelotão
de Investigações Criminais, confirmando que a coragem da moça irritou a tropa. No
“Livro Negro” do Exército, divulgado pela imprensa em abril de 2007, consta, a
respeito dela, na pág. 724:
No dia 28(de setembro de 1972), um grupo
que realizava um patrulhamento quase caiu numa emboscada fatal. No entanto,
falhou a arma ou fraquejou um dos terroristas e o grupo foi alertado. Como se
tratasse de uma passagem perigosa, o grupo tinha exploradores evoluindo pela
mata, os quais reagiram a tempo. O terrorista cuja arma falhara logrou fugir. O
outro, que abriu fogo com uma espingarda calibre 16, caiu morto no tiroteio que
se seguiu. Trata-se de Helenira Resende de Souza Nazareth (Fátima), do
destacamento A.
No livro A lei da selva, o jornalista
relata sua morte como ocorrendo na localidade chamada Remanso dos Botos, em
choque com uma patrulha de fuzileiros navais, não do Exército, sem confirmar a
ocorrência de baixas entre os militares da Marinha, que teriam sido retirados
da região em seguida, por falta de condições psicológicas para permanecerem na
selva. Studart transcreve o seguinte trecho do diário de Maurício Grabois, de
autenticidade ainda não comprovada, cuja narração tem pontos comuns e pontos
divergentes em relação ao Relatório Arroyo, transcrito anteriormente: novas
informações foram trazidas sobre o incidente em que o comandante Flávio tombou
sem vida. Os combatentes do DA estavam preparando uma emboscada. Dividiram-se
em 2 grupos que deveriam atuar em conjunto. Um sob o comando do PE (da CM) e
outro sob a direção de Nu. Este último, que vinha na frente, deixou no caminho
da corruptela de S. José dois observadores, Lauro e Fátima, e fez alto a certa
distância. Precisamente nesse momento surgiu na estrada uma força inimiga de 16
homens que acompanhava quatro burros tropeados pelo Edith. À frente da unidade
do Exército vinham três batedores (o que levou Isauro a pensar que a tropa era
constituída apenas de três soldados). Um deles, o sargento, veio para o lado do
barranco onde estavam nossos combatentes. Lauro, que portava arma longa
semi-automática de nove tiros, atrapalhou-se com a arma, não atirou e fugiu. O
milico pressentiu a Fátima e disparou o FAL em sua direção. Esta, com sua arma
de caça 16, o fuzilou. Em seguida, correu e se entrincheirou mais adiante. Um
soldado, que pesquisava o local à sua procura, foi por ela abatido mortalmente
com tiros de revólver 38. Ferida nas pernas foi presa. Perguntaram-lhe onde
estavam seus companheiros. Respondeu que poderiam matá-la, pois nada diria.
Então os milicos a assassinaram friamente. Seu corpo foi enterrado nas Oito
Barracas, para onde foi transportado em burro.
O relatório do Ministério Público
Federal de São Paulo, assinado pelos procuradores: Marlon Alberto Weichert,
Guilherme Schelb, Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Jr, de 28/01/2002, também
registra a partir de depoimentos tomados de moradores da área, quase 30 anos
depois: Helenira Rezende (Fátima) foi vista por um depoente, baleada na
coxa e na perna, sendo carregada em cima de um burro de um morador da região,
próxima à localidade de Bom Jesus. Outro depoente ouviu referências de que Fátima
foi vista na base de Oito Barracas. E um terceiro conta que: “ouviu falar” ter Fátima
chegado já morta em Oito Barracas, em função de ferimentos. Os
procuradores também registram como possível local de sepultamento as
proximidades do igarapé Tauarizinho, na base de Oito Barracas.
Em sua homenagem, o sindicalista CHICO
MENDES, conhecido mundialmente pela luta em defesa da floresta Amazônica,
assassinado por fazendeiros em 22 de dezembro de 1988, deu o nome de Helenira a
sua primeira filha.