Considerações no contexto de formação[1]
A valorização da cultura afro no espaço escolar também é atribuição docente. |
A
aprovação da Lei 10639/2003, que instituiu os trabalhos com a história e a
cultura africana no currículo escolar, suscitou uma série de debates a cerca do
conteúdo, das competências e habilidades demandadas por esse dispositivo legal.
Requereu-se das escolas, e dos docentes, um novo posicionamento frente à
temática. No entanto, são muitos os desafios que se interpõem a uma efetiva
prática docente no sentido de tornar a Lei exequível. Reconhece-se, todavia, a
disposição da Lei em impor um deslocamento da visão simplista com que se tem
pensado a questão negra no Brasil em favor de um posicionamento que reconheça o
papel do negro na constituição do país; que torne visível o racismo, para poder
combatê-lo; que reconheça toda a diversidade cultural, e a contribuição das
matrizes africanas para com essa diversidade. Nesse sentido, ao se propor essa
temática como foco de discussão para esse nosso encontro se pretende que aqui,
no encontro de professores e professoras da área de história, possamos
problematizar a nossa prática e, ao mesmo tempo, formular pressupostos de
superação dos dilemas relacionais à questão negra na sala de aula.
Marc
Ferro (1983) afirma com muita propriedade que “a imagem que fazemos de outros
povos, e de nós mesmos, está associada à história que nos ensinaram quando
éramos criança”, segundo o historiador, essa história ensinada desde cedo “nos
marca para o resto da vida”. É evidente, portanto, que a forma como a sociedade
brasileira pensa o negro em nosso país está relacionada com a nossa própria
prática de ensino, como ensinamos nossos discentes, inclusive negros, a pensar
o negro. Nesse sentido, várias são as questões que poderiam ser propostas para
a problematização da nossa prática pedagógica. De início, é preciso admitir que
a Lei 10.639/2003 foi criada num contexto de política afirmativa, ou seja, a
sua edição visou, antes de tudo, corrigir uma falha do próprio sistema de
ensino que, na visão dos seus idealizadores, tinha uma dívida histórica para
com os afro-descendentes. E essa dívida, verdade seja dita, foi construída com
a nossa contribuição, historiadores que, mais de uma vez, fomos envolvidos num
projeto de nação pensada a partir da Europa.
Um dos aspectos a ser debatido diz respeito aos padrões estéticos. É preciso valorizar a beleza negra. É preciso deixar o negro aparecer. |
Para
Ciro Flamarion Cardoso (1988), até a primeira metade da década de 80 do século
XX a história fazia uma representação marginal do negro. Analisando os
trabalhos de historiadores como Caio Prado e Celso Furtado, em relação aos
quais há quase uma unanimidade quanto a importância dos seus trabalhos para o
entendimento da história do Brasil, Cardoso avalia que o negro aparece nessas
escritas da história como acessório de determinados modelos de produção
econômica. O ponto de partida, quando se fala do negro, não é o negro enquanto
sujeito da história, mas o negro enquanto mão-de-obra, eixo temático das
narrações históricas. Para o autor, houve uma tendência de explicação da
produção econômica no Brasil, que empregava mão-de-obra escrava, como se a
dinâmica em todos os lugares seguisse o mesmo padrão, variando apenas o tipo de
atividade desenvolvida, e não os diversos contextos. Para ele, esse modelo de
narração histórica deveria considerar, primeiramente “a diferenciação das
estruturas produtivas baseadas no trabalho escravo”. (CARDOSO, 1988:35).
Para
Cardoso (op. cit.) haviam graves lacunas na historiografia brasileira no que
diz respeito ao escravo e à escravidão. As lacunas, por si, indicam uma
tendência de marginalização da história da escravidão e do escravo. Não
interessa os marginais. Interessa a economia e o colonizador; depois, com a
independência e com a República, interessava o progresso e uma identidade
nacional, livre desse mal que antes havia sido necessário.
Estabeleceu-se
a Lei como tentativa de reparação da dívida do próprio Estado para com milhões
de brasileiros. Mas, como sabemos, uma coisa é a Lei, outra as possibilidades
para a sua aplicação. Desse modo, duas questões se impõem: a formação docente
do profissional da área de história e o material didático disponibilizado nas
escolas para se trabalhar com essa temática.
No
que diz respeito à formação docente, nesse aspecto é deficiente porque somos
professores eurocentristas porque nossa formação também o foi. O modelo de
história antiga, média, moderna e contemporânea segue a noção de progresso
contínuo da civilização branca européia; e depois, essa forma de pensar a
história no espaço acadêmico foi transposta para o espaço da sala de aula, de
modo que seguimos, em nossas aulas, o mesmo modelo de ensino que, salvo poucas exceções,
nos foi imposto durante a nossa própria formação.
Especialista
em estudos afro, Munanga Kabengele (2005) considera que a formação de
professores que não tiveram em sua base de formação a História da África, a
cultura do negro no Brasil e a própria história do negro de um modo geral se
constitui no problema crucial das novas leis que implementaram o ensino da
disciplina nas escolas. E isso não simplesmente por causa da falta de
conhecimento teórico, mas, principalmente, porque o estudo dessa temática
implica no enfrentamento e derrubada do mito da democracia racial que paira
sobre o imaginário da grande maioria dos professores.
Muito reproduzida nos livros didáticos, essa imagem que inferioriza o negro possibilita a discussão sobre sua função enquanto mediadora de aprendizagem. |
No
que diz respeito aos livros didáticos e a forma como abordam a história e
cultura afro, além circunscrever a temática a poucas linhas ainda a apresentam
sob um viés europeu, bem próprio do que Edward Said chamou de orientalismo[2].
Esse ciclo, formação e material de apoio ao trabalho docente se fecha quando
olhamos para a produção acadêmica que se põe como suporte à formação continuada.
Nesse caso, existem vários artigos, livros e pesquisas que discutem a formação
de professores (CATANI, 1997; BRZEZINSKI, 1996; BUENO; CATANI; SOUSA, 1998;
PIMENTA, 1995; NÓVOA, 1992; PERRENOUD, 2002), mas muito pouco no que se refere
à articulação desta com a Cultura e História Negra e Africana. Isto se deve ao
fato de que cursos desta natureza ainda são incipientes no quadro educacional
brasileiro e só passaram a ter relevância no momento em que obtiveram o status
de obrigatórios, instituído pela Resolução nº 01/04 do CNE, que exige a
inclusão da temática tanto na formação inicial como na formação continuada de
professores.
É
preciso ponderar, no entanto, que se há uma dificuldade de acesso a informações
escritas sobre a África, e sobre a própria história cotidiana, e de resistência
dos negros no Brasil (CARDOSO, 1988:41), então vias alternativas fazem-se
necessárias. O conhecimento da história e valorização da cultura afro só se
desvela a partir de fontes e leituras alternativas. Só se acessa a história dos
marginais (SCHMITT, 2001) quando há uma alteridade que desloca a oposição do
seu nível hierárquico para um novo sentido em que a descoberta da diferença não
implique juízo de valor.
Toda
sociedade tem, em seu interior, os seus marginalizados, aqueles aos quais se nega
o direito à história. Assim, quando se tem como objeto os negros, ou uma
minoria, a temática em questão é a história marginal, porque foram excluídos da
história. A resignificação da nossa prática, o que também pode ser feito a partir
desses momentos formativos, deve contribuir para com a visibilidade destes
segmentos negados pela tradição histórica.
Bibliografia:
BRZEZINSKI,
Iria. Pedagoga, pedagogos e formação de
professores: busca e movimento. Campinas: Papirus, 1996.
BUENO,
Belmira Oliveira; CATANI, Denice Barbara; SOUSA, Cyntia Pereira. A vida e o ofício dos professores: formação
contínua, autobiografia e pesquisa em colaboração. São Paulo: Escrituras
Editora, 1998.
CARDOSO,
Ciro Flamarion. A escravidão no Brasil:
novas perspectivas. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988.
CATANI,
Denice Barbara. (Org.) Docência, memória
e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escritura, 1997.
FERRO,
Marc. A manipulação da história no
ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: Ibrasa, 1983.
NÓVOA,
Antônio. Formação de professores e
profissão docente. In: NÓVOA, Antônio. Os professores e sua formação.
Lisboa: Dom Quixote, 1992.
PERRENOUD,
Philippe. A prática reflexiva no ofício
de professores: Profissionalização e Razão Pedagógica. Porto Alegre: Artmed
Editora, 2002.
PIMENTA,
Selma Garrido. O estágio na formação de
professores: unidade teoria e prática? São Paulo: Cortez, 1995.
MUNANGA.
K. Lei 10.639/03: depoimento. In:
CASTRO, Fabio de. Entrevista. São Paulo: 2005. Disponível em: . Acesso: 29 abr. 2012.
SCHMITT,
Jean-Claude. A história dos marginais.
In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
A cada encontro da nossa formação continuada em contexto de trabalho percebo que momentos como esses são fundamentais para a troca de experiencias, debates, descontração e aprendizado para nós educadores que buscamos melhorar nossa prática docente.
ResponderExcluirEspero que a proposta do BLOG se concretize, tenho até uma sugestão de nome: HISTÓRIA EM FORMAÇÃO.
Abraço