segunda-feira, 29 de maio de 2023

ABEL FERREIRA, NOSSO COLONIZADOR: SOBRE FUTEBOL E DECOLONIALIDADE

 

Abel Ferreira com o celular do produtor Pedro Spinelli
Amante de futebol que sou, acompanhei, com muita angústia devo dizer, o episódio grosseiro do português Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, tomando o celular de um profissional da imprensa que trabalhava na área que lhe tinha sido reservada pela CBF. A grosseria do Abel Ferreira não é novidade. Mas, a forma reiterada aponta para um caminho ignorado por muitos, a convicção do técnico português de que é portador da racionalidade no comando de um grupo habilidoso, todavia, pouco afeitos ao trabalho com o cérebro. Isso fica muito claro em outro episódio. Em 14 de julho de 2022 o português disse em entrevista que Já disse várias vezes que os brasileiros são, de longe, os melhores que já vi jogar. Mas precisam evoluir muito a nível de educação e como homens, porque eles não têm essa formação. Eles às vezes não têm noção nenhuma do que estão fazendo. E isso está na formação" . Foi esse pensamento que inspirou sua maior lição aos jogadores do Palmeiras, um livro inteiro para ensina-los a ter coração quente e “cabeça fria”, ou seja, para aprenderem a somar à habilidade física que têm, a racionalidade que precisam cultivar.

Isso é história do, e no, cotidiano. Os maiores progressos da teoria da história, especialmente a partir dos annales, foi a percepção de que tudo é história, inclusive a dimensão cultural de um povo. Nesse sentido, quem nasceu no Brasil, e já concluiu o ensino médio, só ignora os usos políticos da copa de 1970 pelas falhas da nossa educação, especialmente no ensino de história. A copa do mundo de 1970 foi o evento esportivo de maior cobertura midiática até então e, desde o jingle às relações da seleção brasileira com o governo militar, tudo era estrategicamente montado em favor do imaginário de um país que estava dando certo, embora vivêssemos uma ditadura sanguinária.

Esse exemplo ilustrativo das relações entre futebol e história pensados no Brasil dos anos 70 se estende ao que chamamos de história das mentalidades para entendermos o fenômeno da Decolonialidade, ou de como um homem europeu, o Abel Ferreira, se percebe racional na relação com outro homem, o brasileiro, que é irracional. Nesse imaginário, a ciência, Deus e a civilidade são bens propriamente de homens brancos na mesma medida em seus contrários são próprios e próprias de não-europeus, ou negros para ser mais exato. E que se diga claramente, ser negro, nessa perspectiva, não tem relação direta com a cor da pele, mas simplesmente com a condição de não-europeu. Obviamente, pelo mito da origem, norte americanos, australianos e canadenses gozam da condição de europeus. 

Entre outros, a intelectual equatoriana Catherine Walsh, o sociólogo peruano Aníbal Quijano e o grande filósofo e psiquiatra da Martinica Frantz Fanon explicam a Decolonialidade como um movimento em que somos convidados a olhar para trás, para o processo colonial, para entender como esse processo edificou-se um sistema de representação do mundo. Essa representação funciona como mecanismo de divisão de uma ordem global. De um lado, o europeu, branco, civilizado e cristão; do outro, o não-europeu, inculto, bárbaro e pagão. Essa segunda forma de existência só pode qualificar-se na relação, redentora, com o que já é bom, civilizado e racional. Essa mesma ordem vai se reproduzindo microscopicamente, ou seja, em cada lugar, a exemplo do Brasil, ou Uruaçu em Goiás, quem esteja mais próximo do ideal europeu, em termos de pele e de valores, tanto mais terá respaldo social, aceitação e acesso aos bens produzidos pela sociedade; proporcionalmente, a distância entre esse modelo ideal implica dificuldade de acesso aos bens, inclusive trabalho e renda, na mesma medida.

Para o Abel Ferreira, todos nós somos brasileiros e, por consequência, não-europeus. Inferiores, também por consequência da origem brasileira, não consegue entender o treinador português, como árbitros podem contrariá-lo tanto. Então, quase sempre é expulso de campo. Expulso, usa a mesma justificativa que usa quando seu time não consegue a vitória, é culpa da cultura e do futebol brasileiro. Abel Ferreira acredita ainda ser nosso colonizador. Abel Ferreira nos vê como nos viam os portugueses 523 anos atrás. E é justo que se diga, em história ou em cultura histórica, 523 anos é logo ali, é como ontem. Do ponto de vista do colonizador, sabendo como os brasileiros são tratados em Portugal, não me surpreende essa soberba. Somos nós, brasileiros, que precisamos entender a longa duração da Colonialidade, a sua permanência entre nós. E infelizmente, pela própria lógica desse sistema-mundo, muitos não entendem.  

Quanto ao colonizador, ainda não é possível a Abel Ferreira, sobretudo em face da cortina de proteção em sua volta, entender as bandeiras corintianas no contexto das diretas:

 Ganhar ou perder, mas
sempre com democracia”. 

Da minha parte, fico triste em ver que a imprensa brasileira prefira ser condescendente a proteger os profissionais perseguidos por fazerem o seu trabalho [o Paulo Roberto Martins que o diga!].