segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Orientalismo, uma leitura de Edward Said


SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. 3ª ed. São Paulo: Editora CIA das Letras, 1990.


Resumo: Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente constitui trabalho crítico de Said em que a representação que o Ocidente faz do Oriente comporta as formas de negação que o Ocidente faz desse outro ente que é o oriental e seus valores. Para melhor entendimento dessa obra se estabelecerá uma relação comparativa com o trabalho de Jean Delumeau que sob o título história do medo no ocidente também apresenta a visão perspectiva que o Ocidente faz do oriente, inclusive, com sua conseqüente demonização. A trajetória de Said inclui noções geográficas do imaginativo ocidental e conclui a obra com uma proposição sobre o orientalismo hoje que, de modo especial na política norte americana, ainda relega ao Oriente, todo o fundamentalismo irracional que o mundo civilizado nega e procura exorcizar à custa de novas “guerras santas”.

Palavras – Chave: orientalismo, representação, ocidente, cultura.

Como primeiras palavras podemos dizer que o orientalismo resulta, fundamentalmente, da primazia econômica européia sobre as demais nações em um determinado momento histórico. Assim, no que se refere ao Oriente, assim como foi relativo à compreensão das terras tropicais da América, pouco importou o que esses povos tinham de específico, ou de valor, o Oriente era quase uma invenção da Europa e, comparativo ao Brasil –que diga-se bem Said não se ocupa dessa comparação –sabemos que as primeiras histórias produzidas sobre esse país resultaram de crônicas que, antes de tudo, representavam uma visão quase alienígena de visitantes que por aqui passaram. O que se produzia sobre o Oriente era a representação que dele fazia o visitante europeu. O orientalismo, portanto, por uma questão conceitual, constitui essa produção –num nível acadêmico –que resulta de pesquisas e produções sobre o Oriente em que predomina a visão eurocêntrica de quem fala ou escreve. É um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o oriente. O orientalismo inviabiliza a liberdade de abordagem acadêmica sobre o Oriente, uma vez que essa existência já está determinada. Said melhor esclarece essa situação quando deixa vislumbrar o orientalismo como sinal de poder ao afirmar que:


“Tomando o final do século XVIII como ponto de partida muito grosseiramente definido, o orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com Oriente – negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o (...) sem examinar o orientalismo como um discurso, não se pode entender a disciplina enormemente sistemática por meio da qual a cultura européia conseguiu administrar –e até produzir –o Oriente política, sociológica, ideológica, científica e imaginativamente durante o período pós-iluminista.” (p. 15).

Então o orientalismo, portanto, fundamenta-se na certeza de sua soberania sobre os não-ocidentais. Completado o processo de hegemonia norte americana, o orientalismo vai ter espaço na América onde o Ocidente figura como erudito, democrático, imparcial enquanto o Oriente padece de todos esses valores.
No primeiro capítulo da obra, examinando as abordagens sobre o Oriente, é significativa a referência a um discurso de James Balfour pronunciado em 1910 na Câmara dos Comuns inglesa onde o orador expõe que a supremacia britânica em relação ao Egito é melhor justificada pelo conhecimento que se tem do Egito que pelo poder militar britânico. Nessa proposição “saber é poder” porque o conhecimento a que Balfour se refere é a própria forma de ver e determinar o Egito como existência inferior. O conhecimento é o Egito. O Ocidente tem tendências naturais para o auto-governo ao passo que o Oriente, por uma incapacidade, não demonstra essa aptidão, razão pela qual o seu domínio é justificado. O Egito não fala por si –se assim o fizer será apenas a voz do egípcio agitador –a Inglaterra conhece o Egito e o Egito é esse conhecimento que a Inglaterra tem dele. Em outras palavras, o que interessa ao Ocidente é o conhecimento que ele pode produzir sobre o Oriente e nessa produção, sempre a determinação de inferioridade e a apresentação do oriental como algo tosco e incompleto.
A geografia imaginativa também é um recurso de inferiorização do Oriente. O recurso é da oposição entre eles e nós, ou entre o território deles, que distante e desconhecido, e o nosso que é familiar. Essas fronteiras resultam de um processo mental onde “eles ficam sendo eles, e tanto o território como a mentalidade deles são declarados diferente dos nossos”. (p. 64). Esse distanciamento geográfico do outro, estranho e desconhecido, contêm em si a necessidade de apreensão do outro como forma de produzir uma segurança fundada na dominação que esse conhecimento determinista pode oferecer. Delumeau aborda com maior vagar essa situação em que tanto o mar desconhecido como o Oriente distante produziam o medo no Ocidente resultando disso todo um imaginário de representação do Oriente em que prevalecia a inferioridade deste que era atrasado e não civilizado em relação aos povos civilizados, cristãos e desenvolvidos que, por estas razões, mais aptos estavam para o domínio do mundo.
Dentro dessa abordagem ocidental do Oriente, que Said denomina orientalismo, o maior obstáculo ao projeto ocidental foi o islã. Contudo, apesar da grande ameaça que representou o islã, especialmente nas áreas do chamado Oriente Próximo, seu enquadramento primeiramente a partir de estudos, depois pela invasão napoleônica do Egito, foram abrindo caminho para o seu efetivo domínio. Esses avanços, na maioria acadêmicos, constituíam os primeiros projetos orientalistas sobre o Oriente e o objetivo se configurava no discurso em que o Oriente, tendo o Egito por exemplo, tornava-se um apêndice da Europa senhora e guia de um mundo novo cuja missão era resgatar uma nação que já tinha transmitido “o seu conhecimento a tantas nações” e que naquele momento estava “imersa na barbárie”.
A partir do início do século XX o orientalismo sofre uma crise em seu interior introduzida pelos novos pólos de poder, socialismo x capitalismo. A crise se configura não pela disputa em si, mas pelo novo pólo de poder depois da segunda guerra mundial e pelo fato de que a estabilidade determinada pelo imperialismo deixava de existir definitivamente a partir de 1955, o que exigia novas formas de apreensão. Digo apreensão porque depreendo da leitura que o orientalismo não consistia em uma mera dominação no nível ideológico e cultural, ela tinha uma intenção objetiva e um efeito prático considerando o contexto político-econômico mundial até o início do século XX. Nesse sentido, conforme Abdel Malek, os métodos utilizados pelo orientalismo de até então, mostravam-se absoletos para encarar uma nova realidade de partilha de poder tendo os EUA no centro ocidental.
Introduzindo o segundo tópico da obra, “estruturas e reestruturas orientalistas” Said apresenta uma nova forma de apreensão do outro, o modelo de “uma Ásia “redentora” da Europa onde o que conta, de verdade, é o uso moderno que a Europa faz da Ásia. Entre outros elementos dessa estruturação do novo orientalismo, consta a tendência de classificação em que figuram os “homens selvagens”, os “europeus”, os “asiáticos”, etc. em síntese o orientalismo moderno resultou de uma secularização do orientalismo, centrado anteriormente na questão islâmica. O orientalista moderno era, de certo modo um herói pronto para salvar o Oriente de sua perdição. Nessa pré-disposição redentora, Said interpreta que o orientalismo moderno não se revestiu de uma mudança radical possibilitada por um conhecimento objetivo do oriente, mas, herdou um conjunto de estruturas do passado que foram secularizadas, redispostas e reformadas. Nesse sentido, considerando, por exemplo a face acadêmica dessa disposição Said dá conta que:
O orador didático (...) exibe o seu material aos seus discípulos, cujo papel é receber o que lhes é oferecido na forma de temas cuidadosamente selecionados e arranjados. Posto que o Oriente é velho e distante, a exibição do professor é uma restauração, uma re-visão daquilo que desapareceu do conhecimento mais amplo.

A proposição acima identifica-se com as teses de Sacy que, junto com Renan são figuras bases na elaboração desse novo orientalismo. Renan pode ser considerado como responsável pela perpetuação intelectual das estruturas orientalistas e por ter lhe conferido maior visibilidade por sua contribuição teórica onde como ele enquanto filólogo se creditava, um divisor de povos em superiores e inferiores. Para ele os semitas e o semítico eram criações do estudo filológico orientalista. Nas proposições de Renan, enquanto intenção de contribuir para o desenvolvimento da lingüística indo-européia e para a diferenciação dos orientalismos, o semítico, que ele mesmo abordava, correspondia, do seu ponto de vista, a uma forma degradada, moral e biologicamente, o que, em tese, só poderia ser uma ficção criada por ele mesmo.
Renan, pelo seu destaque intelectual e por sua produção literária, contribuiu para o desenvolvimento de um vocabulário culto que estabelecia terminologias comparativas com características predominantes avaliativas e expositivas como forma de apresentação do oriente. Um nome evocado nesse tocante é o de Karl Marx que, segundo Said, embora reconheça a degradação humana produzida pela política inglesa na região, “reconhece” que a Inglaterra estava tornando possível uma verdadeira revolução social na Índia. Quanto à residência no Oriente, a convivência concreta com o oriental, corresponde ao privilegio de ser um cidadão –acima da esfera comum daqueles com quem convive –representando o mundo europeu que domina –todo poderoso –estas terras selvagens, sendo ele próprio encarnação desse poder. Quando esse ocidental em terras orientais é um peregrino, deve-se considerar que ele vê as coisas do seu próprio modo, assim, o Oriente visitado era o Oriente orientalizado. A melhor expressão dessas viagens encontra-se na figura de Chateaubriand para quem, diante de um oriental tentando falar francês, correspondia a imagem de Crusoe vendo seu papagaio falar pela primeira vez.
A terceira parte da obra faz proposições sobre o orientalismo hoje. Para o autor, reiterando a questão conceitual, orientalismo é um sistema de representações enquadrado por todo um conjunto de forças que introduziram o Oriente na cultura ocidental, na consciência ocidental e, mais tarde, no império ocidental. (p. 209). E completa afirmando que “o orientalismo é uma escola de interpretação cujo material, por acaso, é o Oriente, suas civilizações, seus povos e suas localidades”. (ibidem.). O orientalismo, portanto, não pode ser percebido de forma simplista. Sua compreensão perpassa interesses sócio-econômicos e políticos para avançar sobre o campo da produção acadêmica. A fundamentação para uma consideração inferiorizada do Oriente remonta à produção cuja base, no início do século XIX, associava-se ao darwinismo onde se procurava comprovar a inferioridade biológico dos orientais. Posteriormente, se acrescentou a admoestação político-moral aos orientais e a todos os outros povos que, como os latinos, podiam ser considerados incultos, retardados, atrasados, incivilizados, etc. essa concepção sobre o Oriente, que é bem apresentada por Delumeau, progrediu de uma produção textual de domínio e inferiorização para um efetivo domínio político-ecônomico e militar.
Os princípios da identidade e da não-contradição não se adequão ao discurso orientalista uma vez que sua perícia, que se baseia em “verdades irrefutáveis”, é explicada pela sua retórica onde um homem “de cor” está acorrentado ao seu destino em função de suas raízes antropológicas desveladas pelo homem branco a quem deve servir e obedecer.
Seguindo o progresso dessa história, quando as primeira e segunda guerras mundiais o Oriente entra na história, o Ocidente já lhe tinha preparado essa história. O estilo dessa história corresponde ao poder de simbolizar, ou representar, que o ocidental branco tem sobre o oriental. Disso resulta que ainda hoje o orientalismo, na sua faceta islâmica é uma forma de caracterização do islâmico como uma existência retrógrada. O Oriente e o Islã só podem ser objetos do perito orientalista, defendem os orientalistas.
Nas fases mais recentes do orientalismo, o orientalismo europeu se desgastou e deu lugar aos especialistas de área que, nos Estados Unidos, sobretudo depois dos conflitos árabe-israelenses, se ocupa de estudos a serviço do governo. Seja na televisão, seja no espaço acadêmico, o árabe ocupa espaço significativo nessa nova representação do Oriente onde aparece como valor negativo de desonestidade, perturbador da ordem em Israel e em outros países civilizados, é símbolo da libidinagem e do fundamentalismo radical. Como fornecedor de petróleo, responsável pelas perturbações econômicas mundiais. Mas tudo isso se justifica a numa rápida análise da atenção dada pelos EUA a áreas como Teerã, Cairo e África do Norte onde, desde o fim da Segunda Guerra Mundial os norte americanos já anteviam a dominação como forma de acesso ao petróleo árabe.
A tutela norte americana no Iraque é hoje face de uma convicção na incapacidade de acesso oriental ao reino da justiça que, por essa incapacidade o governo norte americano, procura promover. Circunstanciado por dogmas que lhe são atribuídos, o Oriente, nesse enquadramento é povoado por palestinos bons –que são obedientes às determinações dos invasores –e maus –que reagem e por isso são terroristas. Evocando um texto do professor Gil Carl Alroy, Said apresenta uma visão do oriental, pintada no novo cenário do orientalismo, como “uma única e mesma coisa em sua inclinação para a vingança sangrenta e, em segundo lugar, psicologicamente incapazes de paz e (...) não se deve confiar neles” (p. 312) a conclusão do ilustre professor é que “devem ser combatidos como se combate qualquer outra doença fatal” (ibidem.).
Os Estados Unidos, de modo especial Oxford, Harvard e Universidade da Califórnia se tornaram lugares privilegiados dos estudos orientalistas. O resultado da nova orientalização se reflete internamente no Oriente. O orientalismo norte americano põe em questão a própria relação entre o estudioso e o Estado. Para além dessas questões, o autor conclui apresentando suas expectativas, que considera racionais, de que “o orientalismo não precisa ser sempre tão inconteste, intelectual, ideológica e politicamente como tem sido”. (p. 330). Essa perspectiva é compartilhada por mim que acredito que é possível se pensar o Oriente a partir da própria produção historiográfica oriental, o que pode não eliminar o orientalismo, mas a base estaria, nesse caso, na posição do leitor-pesquisador em poder ser menos fundamentalista.

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