sábado, 5 de agosto de 2017

O DESPREZO PELOS LIVROS: BREVE REFLEXÃO SOBRE O USO DO LIVRO DIDÁTICO.

Centenas de livros didáticos amontoados num canto da escola

Enquanto centenas de livros, alguns ainda no plástico perdem seu ciclo de uso (2015-2017), alunos ficam sem livros.

O fim de um ciclo (2015-2017), a quem servirão estes livros?
No final da adolescência li uma crônica sobre um homem que, tendo conhecimento de uma obra literária – não recordo mais o detalhe sobre como a conheceu – passou a desejá-la em sua estante a qualquer custo. Impressionou-me o desfecho da narrativa vez que, depois de provocar um incêndio apenas para roubar o livro, o personagem apenas contempla a obra em sua estante sem qualquer indicação de que a leria de fato. Acredito tratar da obra a paixão pelos livros (SILVEIRA e RIBAS, 2004), mas também não tenho certeza. Certeza é que houve um tempo em que o livro, às vezes em si mesmo, além de paixão inspirava grandeza ao limite da soberba.

Mas, aquela leitura fez perceber, com mais clareza, como livros constituem expressão de um poder simbólico e, por isso, impõem certo respeito àqueles que os detêm. Desde os gregos, e especialmente com Aristóteles, os homens das letras gozavam de uma distinção quando comparados aos mortais comuns.

Mas o século XX, sobretudo no que antecedeu, durou e sucedeu às duas guerras mundiais, impôs a força, e a violência dela decorrente, como fenômeno preferencial na orientação das ações humanas. Essa situação, como bem o demonstra Hannah Arendt, em pelo menos três trabalhos (1989; 1991 e 1999), não só sobrepôs a violência ao saber, como condicionou o saber às contingências da brutalização social. Considerando a realidade brasileira e o cenário internacional a impressão é que nesse início de século XXI a coisa apenas pirou. Avançamos da força para o caos absoluto – de qualquer modo, um tempo de desprezo a qualquer forma de sabedoria.

Nesse nosso tempo não se pode dizer que exista forma mais segura de garantir a acefalia social do que retirar, na escola e através da escola, as condições de acesso ao saber àqueles que dependem dessa instituição para, por exemplo, poder conhecer um livro.

A escola tem sido o elemento fundamental do processo de desumanização. A escola, à medida que deixa de oportunizar libertação da violência, brutaliza e reproduz a barbárie cujos caos político e social são reflexos.

Como se poderia definir, senão como prática violenta, a forma como lida com livros didáticos – direitos dos alunos e alunas e amontoados às centenas no Escola Gaspar Viana – a rede pública estadual de Marabá? Essa violência equivale ao caso de remédios vencidos e descartados em hospitais públicos – e se vencidos precisam ser descartados –enquanto pessoas morrem por falta destes mesmos remédios.

De um lado, centenas de livros, que deveriam ter sido distribuídos em 2015, jazem feridos pela inoperância pedagógica que impede, do outro lado, outras centenas de jovens e adolescentes de terem acesso ao livro didático – adquirido com dinheiro público exatamente para atender a necessidade destes jovens e adolescentes.

Estive na escola para tentar conseguir pelo menos 10 livros de história do 1º ano do Ensino Médio para alunos da Vila Oziel, onde funcionam turmas de alunos desassistidos de tudo e de todos. Me disseram que deveria encaminhar um requerimento à 4ª Diretoria Regional de Ensino, 4ª URE. A indignação calou minha voz. Impressiona como a incompetência e a irresponsabilidade é competente para se escudar na burocracia e, por essa estratégia, parecer responsável!

O desprezo pelo livro supõe fracasso do processo de formação para a leitura da palavra e, em consequência, incerteza sobre a formação para a consciência e participação na transformação desse mundo, de barbárie, em alguma coisa melhor.   

Bibliografia

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
____. Homens em Tempos Sombrios. Trad. Ana Luisa Faria. Lisboa: Ed. Relógio d'Água, 1991.
____. Sobre a Violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

SILVEIRA, Julio e RIBAS, Martha (Orgs.). A paixão pelos livros. SILVEIRA, Julio (trad.). Rio de Janeiro: Casa da Palavra: 2004.

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