Estive ontem, domingo, em Xambioá. Nasci a cerca de 40 quilômetros dali, em Piraqué, hoje renomeado como Piraquê, uma mudança de acentuação que gerou polêmica e que nunca foi aceita pela população. Na década de 1970, nasci no final daquela década, Piraqué e Xambioá eram quase a mesma coisa, vilinhas com baixa densidade demográfica e com índices alarmantes de violência impostas pelo Estado autoritário e por grileiros de terra, também protegidos pelo Estado e, muitas vezes, com representação deste.
A memória coletiva sobre a Guerrilha do Araguaia, episódio ligado ao autoritarismo do Estado e às formas de resistência a esse autoritarismo, revelam um arbítrio pavoroso dos agentes públicos armados com o povo da região. Histórias de tortura física e moral, do terror imposto pelos militares e de como os camponeses viviam humilhados de todos os lados - por fazendeiros e militares - tornaram-se narrações cotidianas da minha infância.
Agora adulto, e professor de história na mesma região, aprendi a transformar essas narrações em saber sistêmico sobre uma parte do passado de nosso país.
Foi com um olhar crítico, de quem conhece um pouco da situação dos camponeses, incluindo aí aqueles que compõem a Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, que vejo de forma bastante contraditória o empenho do governo, e o rio de dinheiro que está sendo gasto, nas escavações em Xambioá.
É de conhecimento público que o governo insiste na proteção aos bandidos que, em nome da Segurança Nacional, mataram e torturaram. Assim, encontrar restos mortais não significa, de modo algum, punição aos assassinos ou qualquer outra ação do Estado no sentido de afirmar, até internacionalmente, que o Brasil tem um governo sério, que anseia pela promoção da justiça.
O que eu vi em Xambioá? escavadores, e toda a burocracia do Estado, lá, maculando os túmulos de meus amigos mais íntimos na véspera do feriado de finados, cuja visita fúnebre antecipei para o domingo. E qual o sentido disso? Para os familiares, faz todo sentido, principalmente no que diz respeito às indenizações. Para o povo, não sei. Podem falar em memória histórica, em reconhecimento do que aconteceu, ou outros artíficios discursivos, mas a verdade é que se o governo tivesse interessado nisso, de verdade, já teria imposto aos militares a abertura dos arquivos secretos e tornado público o que a escória esconde. Posso estar enganado, mas acredito que a trazer à luz documentos mantidos ignorados pela sociedade, revelam muito mais do que ossadas. Por outro lado, do ponto de vista da economicidade, abrir os arquivos teriam um custo efetivo menor.
Um familiar de desaparecido na região, lendo esse texto pode ficar contrariado com o que escrevo. Mas, justifico, procuro compreender o sentimento dos familiares. Minha crítica é com a demasiada atenção do governo a esse grupo, que supostamente está enterrado em Xambioá, onde qualquer criança de Xambioá sabe de difícil confirmação, e o esquecimento proposital aos muitos outros feridos pela mesma violência do Estado. Em São Domingos do Araguaia conheci um rapaz, Lauro, que perdeu um braço durante aquele período; lá, em São Domingos, há uma associação que luta contra o Estado na tentativa de ter reparada/reconhecida a violência de que foram vítimas. Lá não precisa de escavações, de anos de dinheiro público indo para o esgoto sem resultados efetivos, e no entanto, o que o governo já fez? Nada.
Então ou o governo só tem olhos e ouvidos para uma pequena elite que pode ocupar-se, e tem visibilidade social para isso, com a causa, ou o governo só reconhece como vítima os óbitos dos paulistas. Nessa hipótese fica confirmado, depois de anos, o estranhamento que contribuiu para a derrocada dos guerrilheiros. Paulista no Bico do Papagaio significa forasteiro, o outro, o estranho; nos conflitos agrários, o invasor. Paulista sempre foi uma alteridade. Agora o outro é reconhecido como sujeito daquele processo histórico -o objeto das escavações - e o local, o camponês, apenas um expectador sujeito aos efeitos colaterais da ação dos sujeitos do processo histórico.
Isso me incomoda. Aqui também tem gente que pensa. Aqui tem gente que lê os mesmos livros que vocês lêm. Aqui nunca foi o vazio pensado por vocês. E o vazio que vocês sempre pensaram foi, sobretudo, o vazio de civilidade. Nós sabemos o que vocês estão fazendo no nosso cemitério.
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