Hoje, dizer que o livro "1984"
de George Orwell foi profético já é um clichê jornalístico, e suas profecias
são um lugar-comum da modernidade. Sua leitura agora pode ser uma experiência
entediante. Comparados às maravilhas oniscientes do estado de vigilância atual,
os dispositivos do Big Brother — televisores vigilantes e microfones ocultos —
parecem pitorescos, até mesmo reconfortantes.
Tudo sobre o mundo que Orwell imaginou
tornou-se tão óbvio que temos dificuldade com as deficiências narrativas do
romance.
Impressiono-me mais com outro dos seus
oráculos: um ensaio de 1945 intitulado "Você e a Bomba Atômica," em
que Orwell antecipa mais ou menos a forma geopolítica do mundo no meio século
que se seguiu. "Épocas em que a arma dominante é cara ou difícil de
fazer", ele explica. "Será uma era de despotismo, ao passo que,
quando a arma dominante é barata e simples, as pessoas comuns têm uma chance.
Uma arma complexa deixa o forte mais forte, enquanto uma arma simples — desde
que não haja resposta a ela — fortalece os fracos".
Ao descrever a bomba atômica (que havia
sido lançada apenas dois meses antes em Hiroshima e Nagasaki) como uma
"arma inerentemente tirânica", ele prevê que ela irá concentrar o
poder nas mãos de "dois ou três superestados monstruosos" com
avançadas bases de indústria e pesquisa necessárias para produzi-la. E se, ele
pergunta, "as grandes nações sobreviventes fizessem um acordo tácito para
nunca usar a bomba atômica uma contra a outra? E se elas apenas a usassem, ou
ameaçassem usá-la, contra povos incapazes de retaliar?".
O resultado provável, ele conclui, seria
"uma época tão horrivelmente estável quanto os impérios de escravos da
antiguidade". Ao inventar o termo, ele prevê "um permanente estado de
'guerra fria': uma paz sem paz", em que "os povos e as classes
oprimidas têm menos perspectivas e esperança".
Há paralelos entre a época de Orwell e a
nossa. Por um lado, nos últimos meses, fala-se muito sobre a importância de
"proteger a privacidade", mas pouco sobre por que isso é importante.
Não é, como nos querem fazer acreditar, que a privacidade seja inerentemente
valiosa. Isso não é verdade. A verdadeira razão está no cálculo do poder: a
destruição da privacidade amplia o desequilíbrio de poder existente entre as
facções que decidem e o povo, deixando "os povos das classes
oprimidas", como Orwell escreveu, "ainda mais sem esperança".
O segundo paralelo é ainda mais grave e
menos compreendido. Nesse momento, mesmo aqueles que lideram o ataque contra o
estado de vigilância continuam a tratar a questão como se ela fosse um
escândalo político, culpa de políticas corruptas de alguns homens maus, que
devem ser responsabilizados. Acredita-se que as sociedades precisem apenas
aprovar algumas leis para corrigir a situação.
O câncer é muito mais profundo do que
isso. Vivemos não só em um estado de vigilância, mas em uma sociedade de
vigilância. A vigilância totalitária não está apenas em nossos governos; está
incorporada na nossa economia, em nossos usos mundanos da tecnologia e em
nossas interações cotidianas.
O conceito da internet — uma rede única,
global, homogênea que abrange o mundo todo — é a essência de um estado de
vigilância. A internet foi construída em um modo de vigilância amigável porque
os governos e organismos comerciais importantes assim o quiseram. Havia
alternativas a cada passo do caminho. Elas foram ignoradas.
Em sua essência, empresas como o Google e o
Facebook estão no mesmo ramo de negócio que a Agência de Segurança Nacional
(NSA) do governo dos EUA. Elas coletam uma grande quantidade de informações
sobre os usuários, armazenam, integram e utilizam essas informações para prever
o comportamento individual e de um grupo, e depois as vendem para anunciantes e
outros mais. Essa semelhança gerou parceiros naturais para a NSA, e é por isso
que eles foram abordados para fazer parte do PRISM, o programa de vigilância
secreta da internet. Ao contrário de agências de inteligência, que espionam
linhas de telecomunicações internacionais, o complexo de vigilância comercial
atrai bilhões de seres humanos com a promessa de "serviços
gratuitos". Seu modelo de negócio é a destruição industrial da
privacidade. E mesmo os maiores críticos da vigilância da NSA não parecem estar
pedindo o fim do Google e do Facebook.
Recordando as observações de Orwell, há um lado
"tirânico" inegável na internet. Mas ela é muito complexa para ser
inequivocamente classificada como um fenômeno "tirânico" ou
"democrático".
Quando os povos começaram a formar cidades, foram
capazes de coordenar grandes grupos pela primeira vez e rapidamente ampliar a
troca de ideias. Os consequentes avanços técnicos e tecnológicos geraram os
primórdios da civilização humana. Algo semelhante está acontecendo em nossa
época. É possível se comunicar e fazer negócios com mais pessoas, em mais
lugares em um único instante de modo nunca antes visto na história. A mesma
evolução que facilita a vigilância da nossa civilização, dificulta sua
previsibilidade. Grande parte da humanidade teve facilitada a busca pela
educação, a corrida para o consenso e a competição com grupos de poder
entrincheirados. Isso é encorajador, mas a menos que seja cultivado, pode ter
vida curta.
A moeda virtual bitcoin usa criptografia
sofisticada como medida de segurança e está à frente do atual sistema
financeiro.
Se há uma analogia moderna do que Orwell chamou de
"arma simples e democrática", que "fortalece os fracos",
ela seria a criptografia, a base da matemática por trás do bitcoin e dos
programas de comunicações mais seguros. A produção é barata: um software de
criptografia pode ser produzido em um computador doméstico. E a distribuição é
ainda mais barata: um programa pode ser copiado de uma forma que objetos
físicos não podem. Mas também é insuperável — a matemática no coração da
criptografia moderna é sólida e pode suportar o poder de uma superpotência. A
mesma tecnologia que permitiu que os aliados criptografassem suas comunicações
de rádio para protegê-las contra interceptações, agora pode ser baixada através
de uma conexão com a internet e instalada em um laptop barato.
Considerando-se que, em 1945, grande parte do mundo
passou a enfrentar meio século da tirania em consequência da bomba atômica, em
2015 enfrentaremos a propagação inexorável da vigilância em massa invasiva e a
transferência de poder para aqueles conectados às suas superestruturas. É muito
cedo para dizer se o lado "democrático" ou o lado
"tirânico" da internet finalmente vencerá. Mas reconhecê-los — e
percebê-los como o campo de luta — é o primeiro passo para se posicionar
efetivamente junto com a grande maioria das pessoas.
A humanidade agora não pode mais rejeitar a
internet, mas também não pode se render a ela. Ao contrário, temos que lutar
por ela. Assim como os primórdios das armas atômicas inaugurou a Guerra Fria, a
lógica da internet é a chave para entender a iminente guerra em prol do centro
intelectual da nossa civilização.
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